A segunda razão seria a de selecionar textos que mostrassem, então, as visões de mundo destas sociedades, e evitei repetir textos já utilizados na outra antologia. Em compensação, aproveitei fragmentos já presentes nas traduções correntes, e nisso a originalidade desta seleção consiste na escolha dos temas e eixos principais. Alguns deles, como os da seção de religião, são quase inteiramente dominados pelos textos indianos; história, porém, é uma seção quase inteiramente chinesa. Isso por si só já demonstra, substancialmente, algumas diferenças de perspectivas, que abordaremos um pouco melhor adiante.
Por fim, a escolha dos textos situa-se na antiguidade, até o século -1 aec. A partir disso, os contatos entre indianos e chineses acentuam-se, e daí podemos realmente falar de trocas culturais entre ambas as civilizações. Antes disso, contudo, estas civilizações cresceram e se desenvolveram de forma relativamente autônoma, possuindo suas próprias problemáticas e interesses.
Com esta antologia, pretendo novamente suprir as falhas existentes na academia e compor um corpo de textos que possam ser utilizados com fins didáticos ou de pesquisa. Minha pretensão está longe de ser definitiva, e na verdade, minhas intenções são a de ensejar a busca e o estudo destes textos com maior profundidade. Espero, portanto, que o leitor aproveite a experiência.
O Quadro histórico e literário de Índia e China
Devemos iniciar esta antologia com algumas considerações fundamentais sobre a história de ambas as sociedades, apontando principalmente suas singularidades, de modo que se possa construir um conhecimento mais esclarecido sobre elas. Obviamente que um quadro mais completo sobre elas pode ser visto nas páginas do Projeto Orientalismo, Índia Antiga e China Imperial. Alguns pontos, porém, são ilustrativos, como veremos a seguir.
Devemos iniciar esta antologia com algumas considerações fundamentais sobre a história de ambas as sociedades, apontando principalmente suas singularidades, de modo que se possa construir um conhecimento mais esclarecido sobre elas. Obviamente que um quadro mais completo sobre elas pode ser visto nas páginas do Projeto Orientalismo, Índia Antiga e China Imperial. Alguns pontos, porém, são ilustrativos, como veremos a seguir.
Índia
A Índia não conheceu nada parecido com o conceito de história, tal como o propomos, em sua antiguidade. A preocupação fundamental desta civilização atinha-se a uma libertação espiritual que concebia este plano, material, com uma espécie de purgatório das almas, e cujo ciclo de eventos era tão somente algo repetitivo e por isso mesmo, desinteressante. A visão indiana era da negação da materialidade; conseqüentemente, seu foco principal dirigiu-se para uma filosofia de cunho metafísico, uma atenção especial à religião, o que se desdobrava de forma nítida nas considerações acerca da sociedade e da cultura. Assim, a Índia antiga não pensou em qualquer forma de antropologia ou sociologia, senão aquela pautada na interpretação da vida humana como um processo de transmigração de almas; documentos como o Artashastra, um tratado dedicado a política e a administração são exceções, e mesmo assim carregam o peso da religiosidade consigo.
A história indiana, portanto, é uma reconstrução moderna, muitas vezes mais baseada na arqueologia do que nos textos. Estes nos mostram modos de vida ideais, concepções teológicas profundas, mas às vezes nos escapam como fontes sobre o cotidiano. Uma divisão moderna situa as origens da civilização indiana como um movimento autóctone, com raízes pré-históricas. Depois, segue-se o período das primeiras cidades indianas, mohenjo daro e harappa, que termina de modo relativamente abrupto em torno dos séculos -18 -15 aec. Há uma aparente descontinuidade, mas emerge desta época a sofisticada, guerreira e desenvolvida civilização védica, calcada em seu politeísmo diversificado e na sua consolidada estrutura de castas (ou varnas), doravante uma marca da civilização indiana. É desta época a estruturação dos vedas, das cerimônias do soma – o suco alucinógeno sagrado – mas também, o início de uma especulação metafísica que só teria sua conclusão em torno dos séculos -7 -8 aec. Enquanto isso, o mundo indiano dividiu-se em vários pequenos reinos, cujo poder variava constantemente. A unidade possível entre eles se baseava nos ritos religiosos, nos princípios sociais e conceitos comuns, enfim, numa cultura que os definia em relação aos outros – os estrangeiros.
Este mundo vasto, empreendedor e multifacetado dirigia-se, porém, ao centro de uma discussão infindável sobre a realidade da vida espiritual. O período dos séculos -8 -7 aec vê surgir a literatura upanishádica, conclusão de um longo debate filosófico acompanhado pelas aranyakas, brahmanas e puranas, todo um corpus textual inteiramente voltado para a solução das questões religiosas que amarravam esta sociedade. Deste processo, emergem situações conflitantes; a busca da unificação política acompanha-se do surgimento de heresias sócio-religiosas, como jainismo e o budismo. A presença grega no mundo indiano sacode suas fronteiras e sua visão de mundo, e nela, o budismo torna-se a primeira religião proselititsta do mundo, tentando converter os estrangeiros.
Nos séculos -4 -3, a Índia finalmente se vê unificada por uma dinastia, os Maurya, que unem a idéia de indianidade com política. É desta época que surgem textos como o Artashastra, preocupado com a administração das coisas públicas – mas também textos como o de uma política ecumênica universal, como os éditos de Ashoka, soberano pacifista cuja terrível carreira pretérita como conquistador o levou a um acurado exame de consciência sobre as realidades da vida.
Este mundo indiano se veria perturbado, somente, pela vinda dos kushans entre os séculos -2 -1. Contudo, esta invasão estava longe de abalar os alicerces solidamente instituídos da sociedade indiana.
A estrutura destes documentos indianos, portanto, é simples: a primeira geração deles se consigna nos vedas, os primeiros textos do mundo védico; seguem-se as brahmanas e as aranyakas, textos de especulação filosófica que começam a analisar a religiosidade védica; os upanishads concluem esta linha de pensamento, construindo uma nova mentalidade acerca da filosofia, da sociedade e da cultura que seria conhecida como bramanismo – com toda a carga religiosa dela derivada.
Textos auxiliares como o manavadharmashastra, ou as leis de manu, os dharma sutras e o artashastra surgem ao longo desta trajetória, tentando explicar questões variadas, como a administração da lei, papéis sociais, visões de mundo calcadas na religião, etc. Quanto aos puranas, estes se estabelecem como formas de histórias religiosas, como o mahabharata, o ramayana e os puranas dos deuses, todos eles épicos que explicam as teogonias indianas. Juntam-se a estes os textos budistas, com seu ponto de vista particular sobre a existência. Por estas razões veremos a ênfase dos textos indianos em questões centrais da existência de sua sociedade, tais como as castas, a criação do universo, os deuses, a transmigração das almas, etc, deixando de lado um aprofundamento dos aspectos da historiografia ou da política.
China
Tendo em vista o quadro da Índia, não será difícil perceber o quanto a história chinesa é diferente. Embora tivessem (e ainda tenham) uma mitologia rica e variada, essa nos é pouco conhecida – a paixão verdadeira dos filósofos e pensadores chineses foi a história, baseada no desenrolar dos eventos, e investigada a partir de documentos, relíquias e relatos. Suas escolas filosóficas ativeram-se ao “real material”, buscando a imanência, a realização neste mundo, deixando para o além o que seria o próprio além. Tão pouco afeitos a esta metafísica, os chineses sofisticaram o seu pensamento em direção a uma ciência elaborada, racionalmente explicada, que nos permite formar um quadro satisfatório da história intelectual chinesa. Confúcio, o primeiro grande documentarista desta civilização, legou-nos um vasto conjunto de informações sobre o cotidiano, hábitos, costumes, e do que seria a busca da sabedoria – o Dao (via, método, caminho).
Entender a história chinesa, pois, é um desafio sério, mas não pela carência de informações - e sim por sua abundância, e suas versões formatadas, que vêm sendo reelaboradas até os dias de hoje. A cronologia da China é uma hemeroteca de velhas notícias, que dirigem a interpretação dos acontecimentos, aplicando-lhes lentes antigas, mas eficazes. Como disse o sábio Hanyu, da dinastia Tang:
No princípio, não me atrevia a ler nenhum livro que não fosse das antigas dinastias xia, shang, zhou ou da dinastia Han, nem retomar nada que não fosse o ensino de algum grande santo do passado. Cada vez que me detinha, parecia que havia perdido algo, e cada vez que continuava a ler, tinha a sensação de ter me descuidado em alguma coisa. Sempre andava sério como se estivesse meditando, e perplexo como se estivesse perdido. E, quando de pincel na mão, me dispunha a pôr em escrito o que brotava do meu coração, queria suprimir todos os lugares comuns, mas....como era difícil fazê-lo nessas condições! (Hanyu 768-824).
Este espírito afetou de modo profundo o senso crítico chinês, mas igualmente o afiou, tornando-o ao mesmo tempo inquiridor, audacioso, conservador e sintético. A negação do novo é um fenômeno recente nesta história, pois a cultura chinesa desenvolveu desde cedo uma paixão inalterável por conservar o patrimônio de seu passado e, da mesma maneira, encantar-se pelas rupturas saudáveis do pensamento, pela descoberta do inusitado.
A trajetória que acompanharemos aqui, pois, é temporalmente semelhante a da Índia, mas totalmente diferente em sua conformação. A China antiga é um espaço em aberto no seu próprio território, identificada somente por semelhanças culturais. Aparentemente, um movimento de unificação de cidades-estado levou a formação de um reino, conhecido como dinastia xia, do qual pouco sabemos, embora esteja comprovado arqueologicamente. Esta civilização data de algo em torno dos séculos – 18 -15, mas é sucedida pela dinastia shang, bem mais documentada. Entre os shang surge, aparentemente, a escrita (se essa não for também uma conquista dos xia, mas até agora não surgiram provas disso), mas uma farta cultural material, depositada em seus túmulos, permite-nos ter uma cronologia razoavelmente clara dos acontecimentos, que nos permitem saber de sua existência entre os séculos – 15 -12. Somente nesta época eles serão submetidos a dinastia zhou, a mais longa da história chinesa, que institui uma espécie de feudalismo na administração do território, agora muito mais amplo e sinizado.
A história dos zhou, longa, é também permeada por fases sucessivas de poder e decadência; ela divide-se em dois períodos distintos, os dos zhou anterior (1027 – 771) e zhou posteriores (771 - 221), motivados por uma forçada transferência da capital real. A fase dos zhou posteriores divide-se, ainda, no tempo das primaveras e outonos (771 - 481) e no tempo dos estados combatentes (481 – 221), quando finalmente a dinastia é derrubada para dar lugar à nova reunificação chinesa promovida pela dinastia qin (221 – 206). O governo qin, embora eficiente na guerra e na administração, não era sólido nem coeso, sendo derrubado brevemente pela dinastia han, que reinaria até o século 3 ec. Qin construir os grandes monumentos da China antiga, como a grande muralha e a tumba dos guerreiros de terracota, mas também queimou livros, prejudicando o estudo do passado e da filosofia chinesa. Coube aos Han recuperarem parte destas informações, permitindo-nos compreender esta história chinesa antiga.
Os documentos de que dispomos – e que aqui apresentaremos – se constituem basicamente em três corpos distintos: o primeiro trata-se dos clássicos antigos, que seriam o tratado das mutações (yi), dos livros (shu), dos poemas (shi), dos rituais (li) e da música (yue), este último perdido, do qual só sobrou uma parte no Liji. Confúcio os resgata no século -6, e adiciona a eles as crônicas das primaveras e outonos (chunqiu), que receberia três comentários explicativos posteriormente (zuozhuan, guliang e gong yang). Estes livros seriam a documentação básica sobre o passado, que explicaria a vida nas dinastias antiga e o que seria a cultura zhou. Depois da revisão confucionista, temos a vasta e inovadora literatura da época das cem escolas (contida na transição entre as primaveras e outonos e que se desenrola no meio dos estados combatentes), quando o debate filosófico faz surgir toda uma nova quantidade de escritos, defendendo as mais diversas visões sobre a sociedade e o pensamento na época. São deste contexto os textos da escola confucionista, o lunyu, zhongyong, daxue e xiaojing, dos autores mencio e xunzi, dos daoístas laozi, zhuangzi, liezi, dos legistas shang yang e hanfeizi, de mozi, e a coletânea histórica do zhanguoce. O terceiro corpo é dos textos da época han, tempo de sínteses e da criação de novas teorias. Temos o huainanzi de liuan e o chunqiu fanlu de dongzhognshu, ambos tratados sobre filosofia; o inovador shiji, de sima qian, reinventando a história chinesa; ou ainda, o neijing, tratado sobre medicina chinesa que serve para uma interpretação multifacetada do pensamento chinês deste momento.
Perceberemos que a presença marcante nesta textualidade é uma análise pragmatista da realidade. Disso decorre a fundamental importância nos textos das questões políticas, educacionais e sociológicas; como dissemos, a China da antiguidade tem seu pensamento mítico, mas a intelectualidade desta civilização atinha-se ao que entendia ser a sua ciência, baseada numa busca da razão, que o afasta de modo indiscutível da conformação da civilização indiana.
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