NATUREZA HUMANA

A discussão sobre a natureza humana é antiqüíssima na Índia e na China; no entanto, enquanto na Índia ela era lida pela questão da transmigração das almas, na China ela era compreendida como relacionada ao surgimento biológico do ser, fazendo parte de suas propensões naturais. Por conta disso, a questão atravessa todos os textos indianos – e talvez nenhum, se entendermos que esta natureza humana é lida pelo prisma do karma, e todos os seres são, então, iguais perante o absoluto, e diferentes em evolução. Uma compreensão melhor sobre esta questão pode ser vista na seção sobre Sociedade, em que são apresentados os textos que tratam sobre a transmigração da alma e sua relação com as castas. Veremos, pois, dois textos budistas que tratam brevemente sobre a questão, buscando classificar os tipos humanos encarnados em seu “nível de espiritualidade”. Na China, contudo, este problema foi discutido amplamente pelos pensadores chineses, de modo que fosse aplicado, de maneira prática, na formulação de uma ética e de uma ciência sobre o ser humano. O início desse debate se deu com os textos de Mêncio e Xunzi, no período dos sécs. -4 -3 aec., e continuou ao longo da história chinesa. Como nos centramos no período da antiguidade, podemos acompanhar um pouco desta discussão nos textos de Lubuwei (da época Qin), do Huainanzi e de Dong Zhingshu, da dinastia Han, que veremos a seguir.


10. A Visão budista da Natureza Humana no Suttanipata

Vãsettha, responde ele, eu te irei expor segundo a verdade e gradualmente. A divisão em espécies dos seres vivos; pois as espécies os dividem. Considera ervas e árvores! Eles não raciocinam; entretanto eles são marcados cada um segundo sua espécie; pois em verdade as espécies se diferenciam. Considera em seguida os besouros, as borboletas, as formigas, cada um segundo sua espécie, eles também são marcados... Da mesma maneira os quadrúpedes, grandes e pequenos, os répteis, as serpentes, os animais de longo dorso, os peixes, os hóspedes do lago, os habitantes das águas, os pássaros, as criaturas aladas que povoam o espaço; todos são marcados segundo sua espécie, pois as espécies se diferenciam. Cada um segundo sua espécie leva sua marca. No homem não há multiplicidade, nem na cabeleira, nem na cabeça, as orelhas ou os olhos, nem na boca, no nariz, os lábios e as sobrancelhas, nem na garganta, quadris, o ventre ou o dorso, nem nas nádegas, os órgãos sexuais, ou o peito, nem nas mãos, os pés, os dedos ou as unhas, nem nas pernas e as coxas, nem a tez nem a voz, não há uma marca que diga sua espécie, como em todos os outros. Nada que seja único nem se encontre no corpo humano: a diferença dos homens é puramente nominal.


11. Outra visão budista, sobre a natureza humana, no Samyutta Nikaya

Constata-se que existem no mundo quatro tipos de indivíduos. Quais são? Há os sombrios, que caminham para as trevas, os sombrios que caminham para a claridade; os claros que caminham para as trevas, os claros que caminham para a claridade. Qual é aquele que é sombrio, que caminha para as trevas? É, por exemplo, o homem nascido numa família humilde; ele é pobre, mal nutrido, vivendo numa condição miserável, aflito, disforme. Sua conduta do corpo, de palavra e de pensamento é má, de modo que quando da decomposição de seu corpo após a morte ele surge no Abismo, o Mau Destino, a Queda. É como se o ser caminhasse de cegueira em cegueira, das trevas a outras trevas, de uma mancha de sangue a outra. Qual é aquele que é sombrio, e que caminha para a claridade? É, por exemplo, aquele que é nascido nas condições más que acabo de dizer, mas cuja conduta de corpo, de palavra e de pensamento é boa, de modo que quando da decomposição de seu corpo após a morte ele surge num Bom Destino, num mundo celeste. É como se o ser se elevasse do solo num palanquim, do palanquim ao dorso de um cavalo, do dorso do cavalo ao dorso de um elefante ou do elefante sobre um terraço. Qual é aquele que é claro mas que caminha para as trevas? É, por exemplo, aquele que nasceu numa família de elevada estirpe, muito rica, e com tudo que pode assegurar o prazer. Mas sua conduta de corpo, de palavra e de pensamento e mau, de sorte que quando da decomposição de seu corpo após a morte, ele surge no Abismo, o Mau Destino, a Queda. É como se o ser descesse de um terraço sobre um elefante, do dorso do elefante ao dorso do cavalo, daí em um palanquim e do palanquim a terra. Qual é aquele que é claro e que caminha para a claridade? É por exemplo, aquele que nasceu nas circunstâncias felizes que eu acabo de dizer e cuja conduta de corpo, de palavra e de pensamento é boa, de modo que quando da decomposição de seu corpo após a morte, ele surge num Bom Destino, e num mundo celeste. É como se o ser passasse de um palanquim a um outro, de um cavalo a outro cavalo, de um elefante a um outro elefante, de um terraço a outro terraço. É por esta imagem que eu descrevo este tipo de indivíduo.


12. A natureza humana é boa – a visão de Mêncio

Mêncio disse: “todos tem um coração sensível aos sofrimentos de outros. Os grandes reis do passado tiveram esta sorte do coração sensível e políticas cheias de compaixão foram adotadas. Trazer a ordem ao reino é tão fácil quanto mover um objeto em sua palma quando você tem um coração sensível e põe, em prática, políticas de compaixão. Me deixe dar um exemplo do que eu digo, ou seja, que todos tem um coração sensível aos sofrimentos de outros: qualquer um que viu, de repente, um bebê próximo de cair em um poço se sentiria alarmado e iria salva-lo. Não seria porque quis melhorar suas relações com os pais da criança, nem porque quis uma reputação boa entre seus amigos e vizinhos, nem porque não gostou de ouvir a criança gritar. Disto segue que qualquer um à quem falta sentimentos de comiseração, de carinho, de cortesia ou um sentido de certo e de errado não pode ser entendido como humano.

Gaozi disse: “a natureza humana é como a água correndo: quando um curso é aberto ao leste, ela flui para o leste; quando uma corrente é aberta ao oeste, flui para o oeste. A natureza humana é mais inclinada ao bom tanto para o leste quanto para o oeste. Mêncio respondeu:” a água não tem preferência pelo leste ou pelo oeste, mas não tem uma preferência pelo cimo ou para baixo?” A bondade é na natureza humana como fluir da água para baixo. Não há nenhuma pessoa que não seja boa e nenhuma água que não flua para baixo. Espirrada, ela pode molhar sua cabeça; se forçada, pode ser trazida acima de um monte. Mas esta não é a natureza da água; são circunstâncias específicas. Embora os povos possam ser feitos para serem maus, suas naturezas não são mudadas.


13. A natureza humana é má – a visão de Xunzi

A natureza do homem é má. Bom é o produto humano. A natureza humana é tal que os povos nascem com amor ao lucro, e se seguirem essa inclinações, eles lutarão e arrebatar-se-ão uns aos outros, e as inclinações ao dever e a produção morrerão. Eles nascem com medos e ódios. Se os seguirem, transformar-se-ão em violentos e tendenciosos indo de contra a boa fé, que morrerá. Se forem indulgentes, e desordem da licenciosidade sexual resultará na perda dos princípios rituais e da moral. Em outras palavras, se o povo agir de acordo com a natureza humana e seus desejos, eles inevitavelmente lutarão, arrebatar-se-ão, violarão as normas e agirão com um violento abandono. Conseqüentemente, somente depois de transformados por professores e por princípios rituais e morais, conforme a cultura, poderão permanecer em boa ordem. Visto por este lado, é óbvio que a natureza humana é má e bom é o produto humano.


14. A Natureza Humana é indistinta – a visão de Lubuwei

Se bem que a transparência seja a verdadeira natureza da água, a sociedade perturba essa natureza, impedindo-a de se manter transparente. Apesar da longevidade ser a verdadeira natureza do homem, os bens materiais perturbam esta natureza, e por isso muita gente morre antes do tempo. Os bens materiais deveriam ser usados para aprimorar nossa natureza, e não deveríamos usar nossas naturezas para obter bens materiais.

O fato é que hoje, a maioria dos homens, confusos, usa sua natureza para melhorar seus bens materiais, o que mostra que eles não compreendem a diferença entre o que é importante e o que é insignificante. Quando não se compreende esta diferença, se deprecia o que é importante e se valoriza o insignificante. Deste modo, toda ação conduz ao fracasso. Devido a isso, os governantes viram perversos, os ministros se tornam rebeldes e seus filhos perdem os limites. Um estado ou família em que se suceda algumas dessas coisas está condenado a extinção, a menos que tenha muita sorte.


15. A natureza humana depende da cultura - Huainanzi

Suponhamos que uma pessoa nasça em um lugar remoto e pouco civilizado, na choça de uma família pobre, fica órfão dos pais desde criança e não tem irmãos, nunca teve contato algum com os ritos e nada semelhante, jamais ouviu fala dos exemplos dos antigos sábios, e vive cerrado em uma pequena habitação sem dela sair, então não podemos supor que ele seja estúpido por sua própria natureza como muitos supõem, mas sem dúvida é muito pouco o que ele sabe.


16. A natureza humana depende da educação – Dong Zhongshu

O que se passa agora é que o povo é bom por natureza, mas ela ainda não está desperta, como ocorre com uma pessoa que está com os olhos fechados e, sem abrí-los, ele nada pode ver. Tudo ficará bem se lhe dermos educação. Enquanto permanecer sem despertar, somente podemos dizer que ele tem uma natureza boa, mas ele não é bom. É exatamente como os olhos que permanecem fechados, e que ainda não foram abertos.

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