A MORTE

Ato contínuo, se a discussão sobre a natureza humana era evidentemente forte na China, a questão da morte tornou-se, porém, o foco central das reflexões metafísicas indianas. Eis a razão pela qual esta seção é praticamente dominada pelos textos indianos. Iniciamos por um hino do Atharva Veda, que forma a coleção mais antiga de textos védicos, e do qual podemos extrair alguma coisa do primitivo politeísmo indiano; no seguir, uma explanação sobre a morte e ação humana em um dos primeiros textos de caráter legislativo da Índia, o manavadharmashastra (ou Leis de Manu, o primeiro homem da terra após o dilúvio indiano); depois, a conclusão desta especulação é apresentada em um longo, porém fundamental, texto upanishádico – o katha upanishad traz, especificamente, uma dissertação, sob forma de diálogo “imaginado” (numa percepção religiosa, ele não o seria) acerca da morte, e da transmigração da alma. Depois, uma contraposição budista ao tema, e por fim, a insinuante perspectiva chinesa representada por Zhuangzi; se há morte ou não, qual seria a diferença? Numa proposta inédita, que consigna o desejo chinês de viver a vida imediata, Zhuangzi propõe não só a continuidade da matéria como também, a nossa impossibilidade total de governar este ciclo. (um trecho sobre a visão da morte chinesa pode ser encontrado na seção “Sociedade”, no item 49).


17 - Hino para ser entoado em um funeral, do Atharva Veda

Terra, sê leve, sem espinhos, repousante. Vasta, oferece-lhe o teu abrigo.
Deponham-te, não em lugar estreito, mas em terreno largo. Tuas oblações, enquanto viveste, agora sejam mel para ti.
Chamo o teu pensamento com o meu pensamento. Vai alegre para a tua morada e reune-te aos nossos antepassados, a lama.
Que os ventos te sejam favoráveis e benéficos!
Da tua alma, do teu alento, dos teus membros, nada fique por aqui.
Não sejas oprimido nem pela terra divina e poderosa, nem pela árvore. Vai para o teu lugar, entre os antepassados, sê feliz entre os súditos de lama.
O que se perdeu dos teus membros, ao longe, tua respiração, tua expiração, levadas pelo vento, que os nossos antepassados te restituam aos poucos.
[Durante a cremação]
Os vivos expulsaram-no de casa. Levem-no para longe da aldeia.
Enquanto enterram os ossos, depois da cremação
Ainda vês, depois não verás mais, o sol que está no céu. Ó Terra, como a mãe trata do filho, recobre-o com teu manto.
Agora ainda, não mais depois, mesmo em tua velhice, ó Terra, cobre-o com a tua vestimenta, como esposa com seu marido.
[Ao apagar da fogueira crematória]
Que te seja benéfica a neblina, benfeitora a geada. Fria e fresca de frieza, fresca e feita de frescura, rã nas águas, sê benéfica. Extingue esta chama!


18. A Morte, a transmigração e a Ação Humana no Manava Dharma Shastra (As Leis de Manu)

A ação, que advém da mente, da fala e do corpo, produz resultados bons ou maus; pela ação são causadas as diversas condições humanas, as mais elevadas, as médias e as mais baixas.
A mente é o instigador aqui em baixo, mesmo aquela ação ligada ao corpo, e que é de três tipos, tem três localizações e se classifica sob dez títulos. Cobiçar a propriedade alheia, pensar no coração sobre o que é indesejável e aderir a doutrinas falsas são os três tipos de ação mental pecaminosa. Injuriar o próximo, dizer mentira, detrair dos méritos de todos os homens e falar frivolamente serão os quatro tipos de ação verbal má. Tomar o que não foi dado, ferir as criaturas sem a sanção da lei e manter relações criminosas com a mulher do próximo são declarados como os três tipos de ação corporal ruim. Um homem consegue o resultado de ato mental bom ou mau
em sua mente, o de um ato verbal em sua fala e o de um ato corporal em seu corpo. Em conseqüência de muitos atos pecaminosos cometidos com seu corpo, no nascimento seguinte um homem se toma algo inanimado; em conseqüência de pecados cometidos pela fala, uma ave ou um animal, e em conseqüência de pecados mentais ele nasce novamente em uma casta inferior.
[...]
Mesmo que morresse com ele, um familiar não consegue acompanhar seu parente falecido e todos, com exceção de sua esposa, estão proibidos de acompanhá-lo na trilha de Yama. (a)
Apenas a virtude o acompanhará, onde for; portanto, cumpre teu dever sem hesitar neste mundo desgraçado. As questões de amanhã devem ser tratadas hoje, e as da tarde na manhã, pois a morte não esperara, tenha uma pessoa tratado delas ou não. Enquanto sua mente estiver concentrada em seu terreno, ou ocupação, ou casa, ou enquanto seus pensamentos estiverem absorvidos por algum objeto amado, a morte repentinamente a leva como sua presa, como uma loba arrebata um cordeiro. O tempo não é amigo de pessoa alguma, nem seu inimigo - quando o efeito de seus atos em existência anterior, pela que sua existência atual é causada, tiver expirado, ele leva o homem a força.Ninguém morre antes de chegado seu tempo, ainda que ferido por mil setas; ninguém vive depois de esgotado seu tempo, ainda que tenha sido apenas tocado pela ponta de uma folha de grama Kusha. Nem drogas, nem fórmulas mágicas, nem oferendas queimadas, nem orações, poderão salvar quem esta nos laços da morte ou na velhice.
Um mal iminente não pode ser evitado, mesmo com mil precauções; que motivo tens, então, para te queixares? Assim como um bezerro encontra sua mãe entre mil vacas, um ato cometido anteriormente encontrara certamente quem o perpetrou. Das coisas existentes, o início é desconhecido, o meio de sua carreira conhecido, e o fim desconhecido também; que motivo tens, então, para te queixares? Assim como o corpo dos mortais atravessa as vicissitudes da infância, juventude e idade adiantada, também será transformado em outro corpo dali em diante; um homem sensato não se engana a esse respeito. Assim como um homem veste roupas novas neste mundo, deixando de lado aquelas antes usadas, também o eu do homem põe novos corpos, que se acham de acordo com seus atos numa vida anterior. Arma alguma ferirá o eu do homem, nenhum fogo o queimará, nenhuma água o molhará e nenhum vento o secara. Ele não será ferido, queimado, molhado ou secado; é imperecível, perpétuo, imutável, imóvel, sem início. Diz-se também ser imaterial, passando todo o pensamento, e imutável. Sabendo que o eu do homem é assim, não deves lamentar a destruição de seu corpo.

a) O deus da morte.


19. A Morte no Katha Upanishad

EM DETERMINADA OCASIÃO, Vajasrabasa, esperando obter um favor divino, executou um ritual que exigia que ele se desfizesse de todos os seus bens. Ele teve o cuidado, porém, de sacrificar somente o seu gado e, dele, somente os animais inúteis - os velhos, os estéreis, os cegos e os aleijados. Ao observar essa avareza, Nachiketa, seu filho mais novo, cujo coração havia recebido a verdade ensinada nas escrituras, disse para si mesmo: "Certamente, um devoto que ousa levar presentes tão inúteis está destinado à total escuridão!" Refletindo assim, dirigiu-se ao pai e falou:
"Pai, eu também vos pertenço: para quem me dareis?" Seu pai não respondeu; porém, quando Nachiketa repetiu a pergunta uma e outra vez, ele replicou impacientemente:
"Eu vos darei à Morte!" Nachiketa disse então para si mesmo: "Sou de fato o melhor dentre os filhos e discípulos de meu pai, ou estou, pelo menos, na categoria intermediária, não na pior; porém, de que valor serei para o Rei da Morte?" Estando, porém, determinado a seguir a palavra do pai, disse:
"Pai, não vos arrependais da vossa promessa! Considerai como tem acontecido com aqueles que partiram antes, e como será com aqueles que vivem agora. Como o milho, um homem amadurece e cai ao solo; como o milho, ele brota novamente na estação propícia."
Após falar assim, o rapaz viajou para a casa da Morte. Porém o deus não estava em casa, e Nachiketa esperou durante três noites. Quando finalmente o Rei da Morte voltou, seus servos lhe disseram:
"Um Brahmin, parecido com uma chama de fogo, chegou à vossa casa como hóspede, e vós não estáveis aqui. Desse modo, uma oblação deverá ser feita a ele. Ó Rei, devereis receber vosso hóspede com todos os rituais costumeiros, pois se o chefe de uma casa não mostrar a devida hospitalidade a um Brahmin, perderá o que mais preza - os méritos das suas boas ações, sua integridade, seus filhos e seu gado."
O Rei da Morte, então, aproximou-se de Nachiketa e deu-lhe as boas-vindas com palavras polidas.
"Ó Brahmin", disse ele, "Eu vos saúdo. Vós sois de fato um hóspede digno de todo respeito. Permiti, eu vos imploro, que nenhum mal caia sobre mim! Passastes três noites em minha casa e não recebestes minha hospitalidade; pedi, portanto, três dádivas - uma para cada noite."
"Ó Morte", replicou Nachiketa, "que assim seja. E como primeira dessas dádivas peço que meu pai não fique ansioso a meu respeito, que sua ira se acalme, e que, quando me mandardes de volta, ele me reconheça e me dê as boas-vindas."
"Pela minha vontade", declarou a Morte, "vosso pai vos reconhecerá e vos amará como antes; e, ao ver-vos vivo novamente, ficará com a mente tranqüila, e dormirá em paz."
Nachiketa então disse: "No céu não há medo de modo algum. Vós, ó Morte, não estais lá, nem naquele lugar onde o pensamento de ficar velho faz com que a pessoa estremeça. Lá, livres da fome e da sede, e longe do alcance da dor, todos rejubilam e são felizes. Vós conheceis, ó Rei, o sacrifício do fogo que leva ao céu. Ensinai-me esse sacrifício, pois estou cheio de fé. Esse é o meu segundo desejo."
Consentindo, então, a Morte ensinou ao rapaz o sacrifício do fogo, e todos os rituais e cerimônias que o acompanhavam. Nachiketa repetiu tudo o que havia aprendido, e a Morte, satisfeita com ele, disse:
"Vou conceder-vos uma dádiva adicional. A partir de hoje esse sacrifício será denominado Sacrifício Nachiketa, em vossa homenagem. Escolhei agora vossa terceira dádiva."
Nachiketa, então, pensou consigo mesmo, e disse: - "Quando um homem morre, há esta dúvida: Alguns dizem que ele existe; outros dizem que ele não existe. Se vós me ensinásseis, eu conheceria a verdade. Esse é o meu terceiro desejo."
"Não", replicou a Morte, "mesmo os deuses certa vez ficaram intrigados com esse mistério. A verdade com relação a isso é realmente sutil, não é fácil de ser compreendida. Escolhe alguma outra dádiva, Ó Nachiketa."
Porém, Nachiketa não quis aceitar a recusa. "Vós dizeis, Ó Morte, que mesmo os deuses certa vez estiveram intrigados com esse mistério, e que ele não é fácil de ser compreendido. Certamente, não há melhor mestre para explicá-lo do que vós - e não existe outra dádiva igual a essa."
O deus replicou, mais uma vez tentando Nachiketa: "Pedi filhos e netos que viverão cem anos. Pedi gado, elefantes, cavalo, ouro. Escolhe para vós um poderoso reino. Ou, se não puderdes imaginar algo melhor, pedi isto: não apenas doces prazeres, mas também o poder, além de qualquer pensamento, para experimentar sua doçura. Sim, verdadeiramente, farei de vós o supremo desfrutador de todas as coisas boas. Donzelas celestiais, de beleza excepcional, que não foram destinadas a mortais - mesmo essas, com suas carruagens e seus instrumentos musicais, eu vos darei, para vos servirem. Não me peçais, porém, Ó Nachiketa, o mistério da morte!"
Nachiketa, contudo, manteve-se firme e disse: "Essas coisas durarão somente até o dia seguinte, Ó Destruidor da Vida, e os prazeres que elas conferem desgastam os sentidos. Ficai, portanto, com os cavalos e as carruagens, com a dança e a música, para vós mesmo! Como poderá desejar a riqueza, Ó Morte, aquele que uma vez já viu a vossa face? Não, apenas a dádiva que escolhi - somente isso eu peço. Tendo descoberto a companhia do imperecível e do imortal, como quando vos conheci, como poderei eu, sujeito à decadência e à morte, e conhecendo bem a vaidade da carne - como poderei desejar vida longa?
"Contai-me, Ó Rei, o supremo segredo com relação ao qual os homens mantêm dúvidas. Não solicitarei qualquer outra dádiva."
Com o que, o Rei da Morte, bem satisfeito em seu coração, começou a ensinar a Nachiketa o segredo da imortalidade.

O Rei da Morte;
O bem é uma coisa; o prazer é outra. Esses dois, diferindo em seus propósitos, incitam à ação. Abençoados são aqueles que escolhem o bem; aqueles que escolhem o prazer não atingem o objetivo.
Tanto o bem como o prazer se apresentam ao homem. Os sábios, após examinarem ambos, distinguem um do outro. Os sábios preferem o bem ao prazer; os tolos, levados por desejos carnais, preferem o prazer ao bem.
Vós, Ó Nachiketa, após haverdes observado os desejos carnais, agradáveis aos sentidos, renunciastes a todos eles. Vós vos desviastes do caminho lamacento no qual muitos homens se atolam.
Distantes um do outro, e levando a diferentes desígnios, encontram-se a ignorância e o conhecimento. Eu vos considero, Ó Nachiketa, como alguém que anseia pelo conhecimento, pois uma infinidade de objetos agradáveis foram incapazes de tentar-vos.
Vivendo no abismo da ignorância, embora julgando-se sábios, tolos iludidos dão voltas e voltas, cegos levados por cegos.
Ao jovem irrefletido, enganado pela vaidade das posses terrenas, não é mostrado o caminho que leva à morada eterna. Somente este mundo é real: não existe depois - pensando assim, ele cai uma e outra vez, nascimento após nascimento, dentro das minhas mandíbulas.
A muitos não é concedido ouvir sobre o Eu. Muitos, embora ouçam a respeito dele, não o compreendem. Maravilhoso é aquele que fala a respeito do Eu. Inteligente é aquele que aprende a respeito do Eu. Abençoado é aquele que, tendo aprendido com um bom mestre, é capaz de compreendê-lo.
A verdade do Eu não pode ser completamente compreendida quando ensinada por um homem ignorante, pois as opiniões a respeito dele, não fundamentadas no conhecimento, variam de um para outro. Mais sutil do que o mais sutil é esse Eu, e além de toda lógica. Ensinado por um mestre que saiba que o Eu e Brahman são um só, um homem deixa para trás a vã teoria e atinge a verdade.
O despertar que conhecestes não vem do intelecto, e sim, totalmente, dos lábios dos sábios. Bem-amado Nachiketa, abençoado, abençoado sois vós, porque procurais o Eterno. Quisera eu ter mais discípulos como vós!
Bem sei que os tesouros terrestres duram pouco. Pois não fiz eu mesmo, desejando ser o Deus da Morte, o sacrifício com o fogo? O sacrifício, porém, foi uma coisa efêmera, realizada com objetos fugazes, e pequena é minha recompensa, considerando que meu reino só durará por um momento.
A finalidade do desejo mundano, os objetos fulgurantes que todos os homens almejam, os prazeres celestiais que esperam obter através de rituais religiosos - tudo isso esteve ao vosso alcance. Porém, a tudo isso renunciastes, com firme resolução.
O antigo, fulgurante ser, o Espírito que habita interiormente, sutil, profundamente oculto no lótus do coração, é difícil de ser conhecido. Porém, o homem sábio, que segue o caminho da meditação, conhece-o, e se torna liberto tanto do prazer como da dor.
O homem que aprendeu que o Eu está separado do corpo, dos sentidos e da mente, e que o conheceu por completo, a alma da verdade, o princípio sutil - tal homem verdadeiramente o alcança, e se torna extremamente satisfeito, pois encontrou a fonte e o local onde habita toda a felicidade. Verdadeiramente acredito, Ó Nachiketa, que as portas da felicidade estão abertas para vós.

Nachiketa;
Ensinai-me, Ó Rei, eu vos suplico, o que sabeis estar além do certo e do errado, além da causa e do efeito, além do passado, do presente e do futuro.

O Rei da Morte;
Do objetivo que todos os Vedas proclamam, o qual está implícito em todas as penitências, e em busca do qual homens levam vidas de continência e de serviço, dele falarei sucintamente.
Ele é - OM.
Esta sílaba é Brahman. Esta sílaba é de fato suprema. Aquele que a conhece realiza o seu desejo.
Ela é o apoio mais forte. É o símbolo mais elevado. Aquele que a conhece é reverenciado como um conhecedor de Brahman.
O Eu, cujo símbolo é OM, é Deus onisciente. Ele não nasce. Ele não morre. Ele não é nem causa nem efeito. Esse Ser Antigo não nasceu, é eterno, imperecível; embora o corpo seja destruído, ele não é aniquilado.
Se o assassino pensa que ele mata, se o assassinado crê que ele é morto, nenhum dos dois conhece a verdade. O Eu não mata nem é morto.
Menor do que o menor, maior do que o maior, esse Eu habita para sempre dentro dos corações de todos. Quando um homem está livre de desejos, com sua mente e seus sentidos purificados, ele contempla a glória do Eu e está sem sofrimento.
Apesar de sentado, ele viaja para longe; embora descansando, ele move todas as coisas. Quem, a não ser o mais puro dos puros, pode perceber esse Ser Fulgurante, que é a felicidade e que está além da felicidade?
Ele não possui forma, embora habite a forma. No meio do transitório, ele permanece perene. O Eu é supremo e tudo permeia. O homem sábio, conhecendo-o em sua verdadeira natureza, transcende toda dor.
O Eu não é conhecido através do estudo das escrituras, nem através da sutileza do intelecto, nem através de muito aprendizado. Mas é conhecido por aquele que anseia por ele. O Eu revela verdadeiramente a ele o seu genuíno ser.
Um homem não poderá conhecê-lo através do aprendizado, se não desistir do mal, se não controlar seus sentidos, se não acalmar sua mente, e se não praticar a meditação.
Para ele os Brahmins e os Kshatriyas são apenas alimento, e a morte é em si um condimento.
Tanto o eu individual como o Eu Universal penetraram na caverna do coração, o domicílio do Mais Alto, porém os conhecedores de Brahman e os chefes de família que realizam os sacrifícios do fogo enxergam a diferença entre eles como entre a luz do Sol e a sombra.
Possamos realizar o Sacrifício Nachiketa, que transpõe o mundo do sofrimento. Possamos conhecer o imperecível Brahman, que nada teme, e que é o objetivo e o refúgio daqueles que procuram a liberação. Sabei que o Eu é o cavaleiro, e que o corpo é a carruagem; que o intelecto é o cocheiro, e que a mente são as rédeas. Os sentidos, dizem os sábios, são os cavalos; as estradas por onde passam são os labirintos do desejo. Os sábios consideram o Eu como aquele que se deleita quando está unido ao corpo, aos sentidos e à mente.
Quando um homem não possui discernimento e sua mente está desgovernada, seus sentidos são incontroláveis, como os cavalos rebeldes de um cocheiro. Porém, quando um homem possui discernimento e sua mente está controlada, seus sentidos, como os cavalos bem-domados de um cocheiro, obedecem alegremente às rédeas.
Aquele que não possui discernimento, cuja mente está instável e cujo coração está impuro, nunca alcança o objetivo, e nasce sempre de novo. Mas aquele que possui discernimento, cuja mente está firme e cujo coração é puro, atinge a meta e, após tê-la alcançado, não nasce nunca mais.
O homem que possui um entendimento sólido como cocheiro, uma mente controlada como rédeas - ele é que atinge o final da jornada, a morada suprema de Vishnu, o que tudo permeia.
Os sentidos originam-se dos objetos físicos, os objetos físicos, da mente; a mente, do intelecto; o intelecto, do ego; o ego, da semente não-manifestada; e a semente não-manifestada, de Brahman - a Causa sem Causa.
Brahman é o fim da jornada. Brahman é a meta suprema. Esse Brahman, esse Eu, profundamente oculto em todos os seres, não é revelado a todos; mas àqueles que vêem, puros de coração, de mente concentrada - a eles é revelado.
Os sentidos do homem sábio obedecem à sua mente; sua mente obedece ao seu intelecto; seu intelecto obedece ao seu ego; e seu ego obedece ao Eu.
Acordai! Acordai! Aproximai-vos dos pés do Mestre e conhecei AQUELE. O caminho é como a lâmina afiada de uma navalha, dizem os sábios. É estreito e difícil de trilhar!
Sem som, sem forma, intangível, imperecível, sem gosto, sem cheiro, eterno, sem começo, sem fim, imutável, além da Natureza, assim é o Eu. Quem o conhece como tal está livre da morte.

O Narrador;
O homem sábio, tendo escutado e aprendido a verdade eterna revelada a Nachiketa pelo Rei da Morte, é glorificado no céu de Brahman.
Aquele que canta com devoção esse segredo supremo na assembléia dos Brahmins é recompensado com dádivas imensuráveis!

O Rei da Morte;
O Auto-existente fez com que os sentidos se voltassem para fora. Conseqüentemente, o homem olha para o exterior, e não vê o que está no interior. Raro é aquele que, ansiando pela imortalidade, fecha os olhos para o exterior e contempla o Eu.
Os tolos seguem os desejos da carne e caem na armadilha da morte que tudo abrange; porém os sábios, sabendo que o Eu é eterno, não procuram as coisas transitórias.
Aquele através de quem o homem vê, saboreia, cheira, ouve, sente e tem prazer é o Senhor onisciente.
Ele é, verdadeiramente, o Eu imortal. Quem o conhece, conhece todas as coisas.
Aquele através de quem o homem vivencia os estados de sono ou de vigília é o Eu que tudo permeia. Quem o conhece não sofre mais.
Aquele que sabe que a alma individual, que aproveita os frutos da ação, é o Eu - que está sempre presente interiormente, senhor do tempo, do passado e do futuro - expulsa de si todo o medo. Pois esse Eu é o Eu imortal.
Aquele que vê o Que-Nasceu-Primeiro - nascido da mente de Brahman, nascido antes da criação das águas - e o vê habitando o lótus do coração, vivendo entre elementos físicos, efetivamente vê Brahman. Pois esse Que-Nasceu-Primeiro é o Eu imortal.
Aquele ser que é o poder de todos os poderes, e que nasceu como tal, que se incorpora nos elementos e existe nestes, e que penetrou no lótus do coração, é o Eu imortal.
Agni, o que tudo vê, o que se esconde nos gravetos, como uma criança bem-protegida no útero, que é venerado diariamente por almas despertas, e por aqueles que oferecem oblações no fogo do sacrifício - ele é o Eu imortal.
Aquele no qual o Sol se levanta e no qual se põe, aquele que é a fonte do todos os poderes da Natureza e dos sentidos, aquele que não pode ser transcendido por nada - esse é o Eu imortal.
O que está dentro de nós também está fora de nós. O que está fora também está dentro. Aquele que vê diferença entre o que está dentro e o que está fora segue eternamente de morte para morte.
Brahman só pode ser alcançado pela mente purificada. Apenas Brahman é - nada mais é. Aquele que vê o universo múltiplo, e não a única realidade, segue eternamente de morte para morte.
Aquele ser, do tamanho de um polegar, habita profundamente dentro do coração. Ele é o senhor do tempo, do passado e do futuro. Quem o alcança nada mais teme. Verdadeiramente, ele é o Eu imortal.
Aquele ser, do tamanho de um polegar, é como uma chama sem fumaça. Ele é o senhor do tempo, do passado e do futuro, o mesmo hoje e amanhã. Verdadeiramente, ele é o Eu imortal.
Como a chuva que cai numa colina, com torrentes descendo pelo lado, assim corre aquele que depois de muitos nascimentos vê a multiplicidade do Eu.
Como a água pura derramada dentro da água pura permanece pura, assim o Eu permanece puro, Ó Nachiketa, ao se unir com Brahman.
Ao Não-Nascido, cuja luz da consciência brilha para sempre, pertence à cidade de onze portões. Aquele que medita sobre o governante dessa cidade não conhece mais sofrimento. Ele atinge a liberação, e para ele não pode mais haver nascimento ou morte. Pois o governante dessa cidade é o Eu imortal.
O Eu imortal é o Sol que brilha no céu, é a brisa que sopra no espaço, é o fogo que queima no altar, é o hóspede que habita a casa; ele está em todos os homens, está nos deuses, está no éter, está onde quer que esteja a verdade; ele é o peixe que nasce na água, é a planta que cresce no solo, é o rio que jorra da montanha - ele, a realidade imutável, o ilimitável!
Ele, o adorável, instalado no coração, é o poder que dá o sopro vital. Todos os sentidos o homenageiam.
O que pode permanecer quando o habitante desse corpo abandona a concha grande demais, já que ele é, verdadeiramente, o Eu imortal?
O homem não vive apenas do sopro vital e, sim, daquele dentro do qual está o poder do sopro vital.
E agora, Ó Nachiketa, eu lhe falarei a respeito do que não pode ser visto, o Brahman eterno, e do que acontece com o Eu depois da morte.
Dentre aqueles que ignoram o Eu, alguns entram em seres que possuem ventre, outros entram em plantas - de acordo com suas ações e com o crescimento de suas inteligências.
Aquele que está desperto em nós mesmo enquanto dormimos, moldando em sonho os objetos do nosso desejo - esse é realmente puro, esse é Brahman, e esse verdadeiramente é chamado o Imortal. Todos os mundos têm seus seres nele, e ninguém pode transcendê-lo. Esse é o Eu.
Assim como o fogo, apesar de ser único, toma a forma de todos os objetos que consome, também o Eu, embora único, toma a forma de todos os objetos que habita.
Assim como o Sol, que revela todos os objetos àquele que vê, não é atingido pelo olho pecador, nem pelas impurezas dos objetos que fita, também o Eu único, habitando em tudo, não é tocado pelos males do mundo. Pois ele transcende tudo.
Ele é único, o senhor e o mais profundo Eu de tudo; a partir de uma forma ele faz de si mesmo muitas formas. Àquele que vê o Eu revelado em seu próprio coração pertence a eterna bem-aventurança - a ninguém mais, a ninguém mais!
Inteligência do inteligente, eterno entre o que é transitório, ele, embora único, torna possível os desejos de muitos. Àquele que vê o Eu revelado em seu próprio coração pertence a paz eterna - e a ninguém mais, a ninguém mais!

Nachiketa;
De que modo, Ó Rei, encontrarei esse bem-aventurado Eu, supremo, inexprimível, que é alcançado pelos sábios? Ele brilha por si mesmo ou reflete a luz de outrem?
O Rei da Morte Ele não é iluminado pelo Sol, nem pela Lua, nem pelas estrelas, nem pelo relâmpago - nem, verdadeiramente, pelo fogo aceso na Terra. Ele é a única luz que fornece luz para tudo. Brilhando ele, tudo brilha.
Este Universo é uma árvore que existe eternamente, com suas raízes voltadas para cima e seus galhos espalhados embaixo. A raiz pura da árvore é Brahman, o imortal, em quem os três mundos têm sua existência, a quem ninguém pode transcender, que é verdadeiramente o Eu.
Todo o Universo veio de Brahman e se move em Brahman. Poderoso e terrível é ele, semelhante ao trovão que explode nos céus. Para os que o alcançam a morte não contém terror.
Com medo dele o fogo queima, o Sol brilha, a chuva cai, os ventos sopram, e a morte mata.
Se um homem falha em alcançar Brahman antes de abandonar o corpo, terá novamente de colocar um corpo no mundo das coisas criadas.
Na alma de uma pessoa, Brahman é percebido claramente, como se fosse visto num espelho. Também no céu de Brahman, Brahman é claramente percebido, do mesmo modo como uma pessoa distingue a luz da escuridão. No mundo dos pais ele é contemplado como num sonho. No mundo dos anjos ele aparece como se estivesse refletido na água.
Os sentidos têm origens separadas nos seus diversos objetos. Eles podem estar ativos, como no estado de vigília, ou podem estar inativos, como no sono. Aquele que sabe que eles são distintos do Eu imutável não sofre mais.
Acima dos sentidos está a mente. Acima da mente está o intelecto. Acima do intelecto está o ego. Acima do ego está a semente não-manifestada, a Causa Primordial.
Verdadeiramente, além da semente não-manifestada está Brahman, o espírito que tudo permeia, o incondicionado, e quem o conhece obtém a liberdade e alcança a imortalidade.
Ninguém o contempla com os olhos, pois ele não tem forma visível. Porém, no coração, ele é revelado pelo autocontrole e pela meditação. Os que o conhecem se tornam imortais.
Quando todos os sentidos estão imóveis, quando a mente está em repouso, quando o intelecto não treme - esse, dizem os sábios, é o estado mais elevado.
Essa serenidade dos sentidos e da mente foi definida como ioga. Aquele que a obtém liberta-se da ilusão.
Naquele que não está livre da ilusão essa serenidade é incerta, irreal: ela vem e vai. As palavras não podem revelar Brahman, a mente não pode alcançá-lo, os olhos não podem vê-lo. Como, então, a não ser através daqueles que o conhecem, pode ele ser conhecido?
Existem dois eus, o Eu aparente e o Eu verdadeiro. Desses dois, é o Eu verdadeiro, e somente ele, que deve ser sentido como realmente existindo. Ao homem que o sentiu como realmente existindo ele revela sua mais profunda natureza.
O mortal em cujo coração o desejo está morto toma-se imortal. O mortal em cujo coração os nós da ignorância são desatados torna-se imortal. Essas são as verdades mais elevadas ensinadas nas escrituras.
Existem cento e um nervos que se irradiam do lótus do coração. Desses nervos ascende o lótus de mil pétalas do cérebro. Se, quando um homem morre, sua força vital subir e passar através desse nervo, ele atinge a imortalidade; porém, se sua força vital passar através de outro nervo, ele vai para outro plano de existência, e permanece sujeito ao nascimento e â morte.
A Pessoa Suprema, do tamanho de um polegar, o Eu mais profundo, habita para sempre os corações de todos os seres. Como extraímos a seiva da cana, assim deve o aspirante à verdade, com grande perseverança, separar o Eu do corpo. Sabei que o Eu é puro e imortal - sim, puro e imortal!
O Narrador Tendo aprendido do deus esse conhecimento e todo o processo da ioga, Nachiketa foi libertado das impurezas e da morte, e se uniu a Brahman. Assim também será com outro se ele conhecer o Eu mais profundo.


20. A Morte na Visão Budista no Mojjhima - Nikaya

Ó chefes de família, se alguém que marcha segundo o dhamma, que segue uma marcha igual, desejasse [um destes estados]: Possa eu, quando da decomposição de meu corpo após a morte, surgir na companhia de ricos nobres, de ricos brâmanes, de ricos chefes de família, com os devas dos quatro grandes Regentes, com os devas dos Trinta-e-três, com os devas de Yama, com os devas Satisfeitos, com os devas que se deleitam em criar, com os devas que têm todo o poder sobre as criações dos outros, com os devas do séquito de Brahmã, com os devas do Esplendor, com os devas do Esplendor limitado, com os devas do Esplendor infinito, com os devas Luminosos, com os devas Belos, com os devas da Beleza limitada, com os devas da Beleza infinita, com os devas Irradiantes, com os devas Vehapphalã, com os devas Avihã, com os devas Novos, com os devas Graciosos, com os devas da Boa Vista, com os devas Antigos, com os devas que atingiram a infinidade do Éter, com os devas que atingiram a infinidade da Consciência, com os devas que atingiram o aniquilamento de si mesmos, com os devas que atingiram a "não percepção nem a não-percepção" - poderia suceder que surgisse e dessa maneira. Por quê? Porque é um ser que caminha segundo o dhamma, que segue uma marcha igual. Ó chefes de família, se alguém que caminha segundo o dhamma, que segue uma marcha igual, desejasse: "Possa eu, graças à destruição dos fluxos, tendo neste mundo e desde agora realizado pelo meu próprio saber superior a liberdade de coração e a liberdade de intelecto que são sem fluxos, aí permanecer" - poderia acontecer que ele ai permanecesse. Por quê? Porque é um ser que caminha segundo o dhamma, que segue uma marcha igual.


21. A morte na visão de Zhuangzi

Todas as coisas brotam de germes e se tornam germes novamente. Todas as espécies vêm de germes. Certos germes, caindo na água, tornam-se lentilhas-d'água (...) tornam-se líquenes (...) tornam-se um eritrônio (...) produzem o cavalo, que produz o Homem. Quando o Homem envelhece, torna-se germes outra vez.
[...]
Quando Laozi morreu, Chin Yi foi ao funeral. Soltou três gritos de dor e saiu.
Um discípulo dirigiu-se a ele perguntando - "Você não era amigo de nosso Mestre?"
- "Era", replicou Chin Yi.
- "Assim sendo, acha que foi suficiente sua expressão de pesar pela sua morte?", tornou o discípulo.
- "Acho", respondeu Chin Yi. "Estive pensando que ele era homem (mortal), porém agora sei que não era. Quando cheguei para os pêsames, encontrei pessoas de idade que choravam como chorariam pelos filhos, jovens que se lastimavam como se tivessem perdido as mães. Quando essas pessoas se encontraram deviam ter dito palavras sobre o acontecimento e derramado lágrimas sem intenção alguma. (Chorar assim pela morte de alguém) é fugir dos princípios naturais (de vida e morte) e aumentar o apego humano, esquecendo-se da fonte da qual recebemos esta vida. Os antigos chamavam a isto "fugir à retribuição do Céu". O mestre veio porque tinha chegado a hora de nascer, partiu porque chegou o tempo de partir. Os que aceitam o curso natural e a seqüência das coisas e vivem em obediência a eles estão acima da alegria e dos pesares. Os antigos falavam disto como a emancipação da escravatura. Os dedos podem não ser capazes de fornecer todo o combustível, porém o fogo é transmitido e nós não sabemos quando terminará."

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