DEUSES, CRENÇAS E ENCANTAMENTOS

Imersos em sua teologia, os indianos antigos legaram uma vasta documentação sobre seus cultos religiosos, a partir dos quais desenvolveram suas filosofias interpretativas. Já os mitos chineses nos são mal conhecidos; eles vêm, em geral, de fontes bastante posteriores, e o que temos em mãos é considerado, de certa forma, o que restou de antigas tradições. Neste caso, a textualidade precisa, em muito, do suporte arqueológico, que tem trazido a luz uma reconstituição pontuada destes mitos. Esta parte, pois, é constituída, principalmente, por textos indianos. O primeiro texto, do Rig veda, nos conta como os deuses alcançaram a imortalidade; depois, do shataphata brahmana, temos omito do dilúvio indiano, no qual teria sobrevivido manu, o suposto autor do manavadharmashastra. Seguem-se uma série de hinos dedicados as divindades védicas indianas, tanto do Rig veda quanto do Sama veda, mostrando os modos de invocação e nos dando algumas informações sobre a cerimônia do soma, o suco sagrado alucinógeno que expandia a consciência dos brâmanes arianos. Dois upanishads mostram a evolução das especulações metafísicas sobre o criador – brahman – apontando para a formação do henoteísmo clássico indiano, e no seguir, uma série de encantamentos mostram-nos uma outra faceta dos textos védicos: o atharva veda, o mais tardio dos quatro vedas, é um livro de magias, encantamentos mundanos e invocações populares, adotado pela elite bramânica. Quanto à China, dois relatos mitológicos recontados em coletâneas posteriores nos servem de ilustração; um sobre Fuxi e Nugua, os dois patronos fundadores da cultura chinesa, e outro sobre Huangdi, o primeiro grande imperador mítico (o soberano amarelo), cujo nome foi empregado pelo unificador da dinastia Qin no séc. -3. Três textos da enciclopédia Shanhaijing – Tratado sobre as montanhas e os mares, o primeiro texto de mitologia chinesa, da época Han (e negado veementemente pelos historiadores da época como fonte fidedigna) nos apresentam alguns mitos da literatura fantástica chinesa; para completar, Zhuangzi explica em seu relato o que seria a vida ideal dos tempos antigos, e como a perda deste mundo utópico gerou a busca do Dao; a história de uma predição é contada no shujing, em o “cofre guarnecido de metal”; um texto oracular do yijing, o tratado as mutações, nos é apresentado, com os comentários de Confúcio; no shijing, o tratado dos poemas, é feita uma invocação ao ancestral da dinastia shang, Tang; e no Liezi, narra-se uma antiga cura para depressão.



51. A Morte e os Deuses no Rig Veda

O ano, sem qualquer dúvida, é o mesmo que a morte, pois o Pai Tempo é aquele que, por meio do dia e da noite, destrói a vida dos seres mortais, e então os mesmos morrem; portanto, o ano é o mesmo que a morte, e quem souber que este ano é a morte não tem sua vida destruída nesse ano, pelo dia e pela noite, antes da velhice, atingindo toda a duração normal de vida. Sem dúvida ele é o Terminador, pois é quem, pelo dia e pela noite, atinge o fim da vida dos mortais, e então os mesmos morrem; portanto, ele é o Terminador, e quem conhecer este ano, a morte, o Terminador, não terá sua vida terminada nesse ano, pelo dia e pela noite, antes da velhice, atingindo toda a duração normal de vida. Os deuses tinham medo deste Prajapati, o ano, a morte, o Terminador, receando que ele, pelo dia e pela noite, atingisse o final de suas vidas.Eles executaram estes ritos sacrificais - o Agnihotra os sacrifícios da Lua Nova e Lua Cheia, as oferendas das estações, o sacrifício de animais e o sacrifício-Soma; fazendo essas oferendas eles não conseguiram a imortalidade. Construíram também um altar de fogo, - dispondo inúmeras pedras de encerramento, inúmeros tijolos de yaiushmati, inúmeros tijolos de lokampritta, como alguns os dispõem até hoje, dizendo: "Os deuses fizeram assim". Eles não conseguiram a imortalidade. Continuaram a louvar e trabalhar, esforçando-se por conquistar a imortalidade. Prajapati disse-lhes então: "Vós não dispondes todas as minhas formas, mas fazeis-me ou grande demais, ou deixais-me defeituoso; por isso vós não vos tomais imortais”. Eles disseram: "Dize-nos tu mesmo, então, de que modo podemos dispor todas as tuas formas!" Ele respondeu: "Disponde trezentas e sessenta pedras de encerramento, trezentos e sessenta tijolos de yaiushmati e trinta e seis, outrossim; e de tijolos de lokamplita disponde dez mil e oitocentos; e vós estareis dispondo todas as minhas formas e vos tomareis imortais". E os deuses dispuseram conforme dito, e daí em diante se tornaram imortais.

A morte disse aos deuses: "Certamente com isso todos os homens se tornarão imortais, e que parte então será a minha?" Eles responderam: "Doravante ninguém será imortal com o corpo; somente quando tiveres tomado esse corpo como tua parte, aquele que se deverá tornar imortal, seja pelo conhecimento ou pela obra sagrada, se tomará imortal depois de separar-se do corpo". Ora, quando eles disseram "seja pelo conhecimento ou pela obra sagrada", é o altar de fogo que constitui o conhecimento e esse altar é a obra sagrada. E aqueles que sabem isso, ou aqueles que fazem essa obra sagrada, voltam a vida novamente quando morreram e, voltando a vida, chegam a vida imortal. Mas os que não sabem isso, ou não executam essa obra sagrada, voltam a vida novamente quando morrem, e tornam-se o alimento da Morte repetidamente.


52. A Lenda Indiana Sobre o Dilúvio

Pela manhã trouxeram a Manu água para se lavar, assim como hoje trazem água para lavar as mãos. Quando se lavava, um peixe veio ter as suas mãos. O peixe lhe disse: "Ajuda-me, eu te salvarei!" Do que me salvarás?' "Uma enchente varrera todas estas criaturas - isso te salvarei!" "Como te devo ajudar?”
O peixe lhe disse: "Enquanto somos pequenos, há grande destruição para nós e um peixe devora o outro. Tu me manterás primeiro em uma jarra. Quando eu crescer, tu cavarás um poço e me manterás nele. Quando eu crescer mais, tu me levaras ao mar, pois estarei então além da destruição".
O peixe logo se tornou grande, com o que disse: "Em tal e qual ano a enchente virá. Tu ouvirás então o meu conselho, preparando um navio; e quando a enchente chegar tu entrarás no navio e eu te salvarei dela".
Depois de criado desse modo, ele o levou para o mar. E no mesmo ano que o peixe dissera ele ouviu seu conselho, preparando um navio; e quando a enchente chegou, ele entrou no navio. O peixe então nadou para ele e a seu chifre ele atou a corda do navio, passando assim rapidamente para outra montanha no norte.
Ele disse então: "Eu te salvei. Amarra o navio à uma arvore, mas não deixa a água te levar, enquanto estiveres na montanha. A medida que a água baixar, tu poderás descer gradualmente!" Assim fazendo, ele desceu gradualmente e por isso aquela encosta da montanha ao norte se chama "a descida de Manu!" A enchente então varreu todas estas criaturas e somente Manu ficou aqui.


53. Hino à Indra, no Rig Veda

Indra, que aceitas nossos louvores, conduzam-te até aqui os teus corcéis, a fim de beberes o suco do soma. Celebrem tua presença os sacerdotes radiantes como o sol.
Conduzam Indra os seus corcéis a puxarem um carro leve e rápido, quando estas sementes desfeitas em manteiga clarificada estiverem sobre o altar.
Nas cerimônias matinais, invocamos Indra. Invocamo-lo, durante o sacrifício. Convidamos Indra a beber o suco do soma.
Vem, Indra, presenciar nossos sacrifícios com teus cavalos de longas crinas. Nós te invocamos, depois de bebermos a libação.
Aceita nossos louvores, vem aos nossos sacrifícios, para os quais preparamos a libação. Bebe como um cervo sedento.
Derramamos o suco do soma sobre a erva sagrada. Bebe-o, Indra, para seres mais vigoroso.
Que te seja agradável e aceito no coração o nosso canto. Bebe a libação que derramamos.
A fim de beber o suco do soma, Indra, o destruidor dos inimigos, acha-se presente em todas as cerimônias, em que se faz libação do suco do soma.
Satakrata, realiza nossos desejos, dá-nos gado e cavalos, Nós te louvamos com nossa profunda meditação.


54. Hino à Indra, Varuna e ao Suco sagrado, o Soma, no Rig Veda

Busco a proteção dos senhores soberanos, lndra e Varuna. Que os dois nos sejam favoráveis.
Protetores dos mortais, vós ambos estais dispostos a conceder o amparo solicitado por um oficiante como eu.
Concedei-nos, lndra e Varuna, a riqueza que desejamos. Queremos ter-vos sempre ao nosso lado.
Estão prontas as libações para os nossos atos piedosos e louvores dos nossos sacerdotes puros. Assim, estejamos em companhia daqueles que nos concedem alimentos.
Indra é mais generoso do que os outros deuses cujas generosidades se contam aos milhares. Varuna deve ser louvado entre todos aqueles dignos de elogios.
Graças à proteção de ambos, possuímos e guardamos riquezas, vivendo na abundância.
Eu invoco os dois, Indra e Varuna. Façam-nos ambos vencedores dos nossos inimigos.
Indra e Varuna, trazei-nos logo felicidade. Nossos espíritos são dedicados.
Subam até vós os fervorosos louvores que vos dirigimos, Indra e Varuna. Aceitando os nossos louvores, vós os fazeis preciosos.


55. Hino às diversas divindades, no Rig Veda

Despertem os Asvins, juntos para o sacrifício da manhã. Venham os dois aqui beber o suco do soma.
Nós invocamos os dois Asvins, ambos divinos. Guiando bem o seu carro celeste, eles alcançam o céu.
Asvins, animai a chama do sacrifício com o vosso chicote, umedecido na escuma da boca dos vossos cavalos.
Não está longe de vós a morada de quem vos oferece o sacrifício. Vinde em vosso carro.
Eu rogo a Savitri que me proteja com as suas mãos douradas. Ele determinará o lugar daqueles que o adoram.
Glorificai Savitri, que não é amigo da água. Implorai sua proteção. Desejamos celebrar o seu culto.
Invocamos Savitri, que ilumina a humanidade e concede a opulência.
Sentai-vos, amigos. É justo louvarmos Savitri. Ele dá-nos riquezas.
Agni, traz-nos aqui as queridas esposas dos deuses e Tvastri, para beberem o suco do soma.
Jovem Agni, traz aqui para proteger-nos as esposas dos deuses - Hotras, Bharati, Vavatri e Dischana.
As deusas de asas perfeitas, protetoras da raça humana, concedam-nos sua proteção e inteira felicidade.
Convido-vos a virem aqui, Indra, Varuna, Agni para a nossa felicidade e para beberdes o suco do soma.
O vasto céu e a terra umedeçam com seu orvalho este sacrifício e nos dêem alimentos.
Onde reina Gandarva, os sábios colhem pelas suas preces o leite do céu e da terra.
Terra limpa de espinhos, estende-te ao longe, sê a nossa morada, concede-nos grande felicidade.
Protejam-nos os deuses na terra de onde se levantou Visnú, animado pelas nossas sete orações.
Visnú atravessou o mundo. Três vezes firmou o pé e o mundo inteiro uniu-se no pó.
Protetor invencível, Visnú vigia dos deveres sagrados, deu três passos e terminou seu caminho.
Vede as ações de Visnú, pelas quais o devoto cumpriu votos piedosos. Ele é o digno amigo de Indra.
O sábio contempla sempre esta suprema parada de Visnú, assim como o olhar percorre o céu.
O sábio, sempre vigilante e solícito, acende o fogo do sacrifício, e em seus cânticos glorifica a suprema estação de Visnú.


56. Hino às diversas divindades, no Sama Veda

Namadeva - Nós nos refugiamos ao lado do rei Soma, Varuna, Agni, Aditia, Visnú, Suria, Brahma e Vriaspati.
Os conquistadores da terra elevam-se do mundo inferior às altas regiões do céu, tal como subiram ao paraíso os descendentes de Angiras.
Nós te acendemos, Agni, a fim de nos concederes grandes riquezas. Tu que fazes chover as bênçãos, aprova nossos manjares excelentes, próprios para os sacrifícios, produto do Céu e da Terra.
Gritsamada - Tudo quanto dizemos é ex- pressão sincera do nosso pensamento. Agni sabe onde se servem as ofertas dos sacrifícios. Assim como o céu envolve o horizonte, assim Agni inspira os nossos cânticos.
Paiú - Agni, destrói em toda parte o funesto esplendor dos nossos inimigos. Destrói o poderio e a força dos gigantes Iatudanas.
Prascanva - Agni, prepara aqui um excelente sacrifício para os Vasús, os Rudras, os Aditias, e para os outros deuses, descendentes de Manú, para as divindades que trazem a chuva.


57. Os nomes de Indra, no Sama Veda

Canva - O estalido do chicote que eles empunham ouve-se até aqui assim como também o ruído dos seus carros, pintados de muitas cores.
Trisoca - Indra, que estás. bebendo o sumo da planta da lua, os teus amigos aqui presentes olham-te com a afeição de um dono de rebanho a olhar para o seu gado.
Vatsa - Todos os sacrificantes tratam de aclamar Indra e lhe rendem homenagem, assim como os rios homenageiam o mar.
Cusidina - Pedimos aos deuses que façam cair a chuva, que nos protejam, a fim de estarmos bem amparados.
Medatiti - Ó senhor do alimento, faz por mim, chantre no banquete da planta da lua, o que fizeste por Cacsivan, o filho de Usija.
Sucacsa - Traz-me a ciência, matador de Vrita. Ouve-me, poderoso Indra, possuidor de muitas excelentes qualidades.
Concede-nos, divino Savita, abundantes riquezas e muitos descendentes. Afasta de nós o causador do fatal sono da morte.
Pragata - Onde quer que esteja residindo aquele que envia a chuva, sempre jovem, que envolve tudo, invencível, é lá que o oficiante executa o seu trabalho.
Vatsa - É lá, na região das nuvens, onde se juntam as grandes águas, que o sábio Indra foi gerado pela inteligência. *
Irimiri - Elevai a voz para louvar Indra, o rei dos homens, digno de todo louvor, distribuidor de dons, superior aos heróis.

*Segundo a cosmogonia vedantina, as três divindades supremas - Brama, Visnú, Siva, - suscitam o nascimento de um ser divino, participante da natureza daquelas três divindades. Denominam-nos os hindus Senhor Isvara, não somente criador como também regente da vida das formas e dos seres existentes em um universo planetário. Essa divindade corresponderia ao Logos de Plotino, ao Demiurgo de Platão e ao Deus criador de várias religiões.


58. A especulação sobre o Brahman no Isha Upanishad

No coração de todas as coisas, de tudo o que existe no Universo, habita Deus. Somente ele é realidade. Portanto, renunciando às vãs aparências, rejubilai-vos nele. Não cobiceis a riqueza de ninguém.
Bem pode ficar satisfeito de viver cem anos aquele que age sem apego - que realiza seu trabalho com zelo, porém sem desejo, não ansiando por seus frutos - ele, e somente ele.
Existem mundos sem sóis, cobertos pela escuridão. Para esses mundos vão depois da morte os ignorantes, assassinos do Eu.
O Eu é um só. Sendo imóvel, ele se move mais rápido do que o pensamento. Os sentidos não o alcançam, pois ele sempre vai primeiro. Permanecendo imóvel, ultrapassa tudo o que corre. Sem o Eu, não há vida.
Para o ignorante, o Eu parece mover-se - embora ele não se mova.
Ele está muito distante do ignorante - embora esteja próximo. Ele está dentro de tudo, e está fora de tudo.
Aquele que vê todos os seres no Eu, e o Eu em todos os seres, não odeia ninguém.
Para a alma iluminada, o Eu é tudo. Para aquele que vê harmonia em todos os lugares, como pode haver ilusão ou pesar?
O Eu está em todos os lugares. Ele é brilhante, imaterial, sem mácula de imperfeição, sem osso, sem carne, puro, intocado pelo mal. Aquele que vê, Aquele que pensa, Aquele que está acima de tudo, o Auto-Existente - ele é aquele que estabeleceu a ordem perfeita entre objetos e seres desde o tempo que não tem princípio.
À escuridão estão destinados os que se dedicam apenas à vida no mundo, e a uma escuridão ainda maior os que se entregam apenas à meditação.
Viver somente no mundo leva a um resultado, meditar apenas leva a outro. Assim falaram os sábios.
Aqueles que se dedicam tanto à vida no mundo como à meditação superam a morte através da vida no mundo e atingem a imortalidade através da meditação.
À escuridão estão destinados os que cultuam somente o corpo, e a uma escuridão ainda maior os que veneram apenas o espírito.
Cultuar somente o corpo leva a um resultado, venerar apenas o espírito leva a outro. Assim falaram os sábios.
Os que veneram tanto o corpo como o espírito, pelo corpo vencem a morte, e pelo espírito atingem a imortalidade!
A face da verdade está oculta por vosso orbe dourado, ó Sol. Removei-o, para que Eu, que sou dedicado à verdade, possa contemplar a sua glória!
Ó vós que alimentais, o único que vê, o que tudo controla - Ó Sol que ilumina, fonte de vida para todas as criaturas - retende a vossa luz, reuni os vossos raios. Possa Eu contemplar através da vossa graça a vossa forma mais abençoada. O Ser que aí habita - mesmo esse Ser sou Eu.
Permiti que minha vida agora se una à vida que tudo permeia. As cinzas são o fim do meu corpo. OM... Ó mente, lembrai-vos de Brahman. Ó mente, lembrai-vos das vossas ações passadas. Lembrai-vos de Brahman. Lembrai-vos das vossas ações passadas.
Ó deus Agni, levai-nos à felicidade. Vós conheceis nossas ações. Preservai-nos da ilusória atração do pecado. A vós oferecemos nossas saudações, uma e outra vez.


59. Quem é o criador? No Kena upanishad

Quem comanda a mente para que ela pense? Quem ordena que o corpo viva? Quem faz a língua falar? Quem é o Ser radiante que conduz o olho à forma e à cor, e o ouvido ao som?
O Eu é o ouvido do ouvido, a mente da mente, a fala da fala. Ele também é o alento do alento, o olho do olho. Ao abandonarem a falsa identificação do Eu com os sentidos e com a mente, e ao saberem que o Eu é Brahman, os sábios, ao deixarem este mundo, tornam-se imortais.
O olho não o vê, nem a língua o exprime, nem a mente o alcança. Não o conhecemos e nem podemos ensiná-lo. Ele é diferente do conhecido, e diferente do desconhecido. Foi o que ouvimos dos sábios.
Aquilo que não pode ser expresso em palavras mas pelo qual a língua fala - sabei que é Brahman. Brahman não é o ser que é adorado pelos homens.
Aquilo que não é compreendido pela mente, mas pelo qual a mente compreende - sabei que é Brahman. Brahman não é o ser que é adorado pelos homens.
Aquilo que não é visto pelo olho, mas pelo qual o olho vê - sabei que é Brahman. Brahman não é o ser que é adorado pelos homens.
Aquilo que não é ouvido pelo ouvido, mas pelo qual o ouvido ouve – sabei que é Brahman. Brahman não é o ser que é adorado pelos homens.
Aquilo que não é trazido pelo sopro vital, mas pelo qual o sopro vital é trazido, sabei que é Brahman. Brahman não é o ser que é adorado pelos homens.
Se pensais que conheceis bem a verdade de Brahman, sabei que conheceis pouco. O que pensais ser Brahman no vosso Eu, ou o que pensais ser Brahman nos deuses - não é Brahman. Deveis, portanto, aprender o que é realmente a verdade de Brahman.
Não posso dizer que conheço Brahman totalmente. Nem posso dizer que não o conheço. Aquele dentre nós que melhor o conhece é quem entende o espírito das palavras: "Eu nem sei que não o conheço".
Aquele que verdadeiramente conhece Brahman é quem sabe que ele está além do conhecimento; aquele que pensa que sabe, não sabe. O ignorante pensa que Brahman é conhecido, porém os sábios sabem que ele está além do conhecimento.
Aquele que percebe a existência de Brahman por trás de todas as atividades do seu ser - seja sensação, percepção ou pensamento - somente ele obtém a imortalidade. Através do conhecimento de Brahman, vem o poder. Através do conhecimento de Brahman, revela-se a vitória sobre a morte.
Abençoado o homem que enquanto ainda vive percebe Brahman. O homem que não o percebe sofre sua maior perda. Quando deixam esta vida, os sábios, que perceberam Brahman como o Eu em todos os seres, tomam-se imortais.
Em determinada ocasião, os deuses obtiveram uma vitória sobre os demônios e, apesar de o terem feito apenas através do poder de Brahman, ficaram extremamente vaidosos. Eles disseram a si próprios: "Fomos nós que derrotamos os nossos inimigos, e a glória é nossa."
Brahman percebeu a vaidade deles e apareceu diante deles. Porém eles não o reconheceram.
Os outros deuses então disseram ao deus do fogo: "Fogo, descobri para nós quem é esse misterioso espírito."
"Sim", disse o deus do fogo, e aproximou-se do espírito. O espírito lhe disse:
"Quem sois vós?"
"Sou o deus do fogo. Aliás, sou muito conhecido."
"E que poder exerceis?"
"Posso queimar qualquer coisa que exista sobre a Terra."
"Queimai isto", disse o espírito, colocando palha à sua frente. O deus do fogo caiu em cima da palha com toda a sua força, mas não pôde consumi-Ia. Então voltou rapidamente para junto dos outros deuses e disse:
"Não posso descobrir quem é esse misterioso espírito."
Os outros deuses disseram então ao deus do vento: "Vento, descobri para nós quem é ele."
"Sim", disse o deus do vento, e aproximou-se do espírito. O espírito lhe disse:
"Quem sois vós?"
"Sou o deus do vento. Aliás, sou muito conhecido. Vôo velozmente através dos céus."
"E que poder exerceis?"
"Posso soprar para longe qualquer coisa que se encontre sobre a Terra."
"Soprai isto para longe", disse o espírito, colocando palha diante dele.
O deus do vento caiu em cima da palha com toda a sua força, porém foi incapaz de movê-la. Então, voltou rapidamente para junto dos outros deuses e disse:
"Não posso descobrir quem é esse misterioso espírito."
Os outros deuses disseram então a Indra, o maior deles todos: "Ó respeitável, descobri para nós, nós vos suplicamos, quem é ele."
"Sim”, disse Indra, e aproximou-se do espírito. Porém o espírito desapareceu, e em seu lugar surgiu Uma, a Deusa-Mãe, bem-adornada e de uma beleza extraordinária. Contemplando-a, Indra perguntou:
"Quem era o espírito que apareceu para nós?"
"Aquele", respondeu Uma, "era Brahman. Foi através dele, e não de vós mesmos, que obtivestes a vitória e a glória."
Desse modo, Indra, o deus do fogo e o deus do vento, reconheceram Brahman.
O deus do fogo, o deus do vento e lndra - eles superaram os outros deuses, pois chegaram mais perto de Brahman, e foram os primeiros a reconhecê-lo.
Porém, dentre todos os deuses, lndra é supremo, pois ele foi dos três o que chegou mais perto de Brahman, e foi o primeiro deles a reconhecê-lo.
Essa é a verdade de Brahman com relação à Natureza: seja no clarão do relâmpago, ou no piscar dos olhos, o poder que aparece é o poder de Brahman.
Essa é a verdade de Brahman com relação ao homem: nos movimentos da mente, o poder que aparece é o poder de Brahman. Por esse motivo, um homem deveria meditar sobre Brahman de dia e de noite.
Brahman é o adorável ser em todos os seres. Meditai sobre ele assim. Aquele que medita desse modo sobre ele é respeitado por todos os outros seres.


60. Prece recitada durante o preparo de um ungüento preservativo de males e doenças, do Atharva Veda

Vem como protetor de vida! És o olho da montanha, foste concedido por todos os deuses como escudo defensor da vida. És salvaguarda para os homens, para as vacas, cavalos, corcéis.
És a salvaguarda que estrangula os feiticeiros. Ungüento, conheces também a origem da imortalidade. És alimento vital, remédio para a icterícia.
Ungüento, quando penetras no corpo, de um membro a outro membro, de uma articulação a outra articulação, expulsas a tísica, como se fosses um rei sentado entre adversários.
A maldição não atinge a pessoa que faz uso de ti, ungüento, nem a magia, nem o sofrimento, nem a doença.
Mau conselho, mau sonho, ação má, mau coração, mau olhado, protege-nos de tudo isso, ungüento.
Sabedor disso, direi a verdade, não a mentira, ungüento! Quero ganhar um cavalo, uma vaca, e a tua própria vida, homem!
O ungüento possui três escravas: a febre, a inchação e a serpente. e. teu pai, ungüento, a mais alta montanha, a montanha dos três cumes, o Trikakud.
O ungüento nasceu na montanha das neves. Que ele estrangule todos os feiticeiros e feiticeiras. Sejas oriundo do Trikakud ou te chames ungüento do rio Iamuna, estes dois nomes são propícios e por eles protege-nos, ungüento!


61. Para obter o amor de uma mulher (idem)

Deseja meu corpo, meus pés, meus olhos! Deseja minhas coxas! Teus olhos, teus cabelos, amorosa, sofram de paixão por mim!
Faço que te agarres ao meu braço, apegando-te ao meu coração. Estejas submissa à minha vontade e sob o meu domínio.
Vacas, mães da manteiga sagrada, cuidadosas dos vossos bezerros, fazei que esta mulher me ame!
Como o cipó enrola-se na árvore, assim não te afastes de mim, sê minha amante!
Como a águia ao levantar vôo toca no chão com as asas, assim eu toco em teu coração. Sê minha amante e não te afastes de mim!
Como o sol envolve a Terra na mesma luz, assim eu envolvo o teu coração. Sê minha amante e não te afastes de mim!


62. Hino às rãs, para que venham as chuvas (idem)

Elas estiveram escondidas o ano inteiro, como os brâmanes na observância do voto. Agora, ao convite de Parjania, elas alteiam a voz.
Quando foi molhada pelas águas do céu aquela que estava ressequida como tripa seca de boi, propagou-se a cantoria das rãs, como se fosse o mugido de vacas e bezerros.
No começo da época das chuvas, todas, satisfeita a sede, gritam: Akhkhala! - e correm umas para as outras assim como os filhos correm para os pais.
Embriagadas sob o aguaceiro, congratulam-se umas com as outras. Pulando sob a chuva, a rã mosqueada canta com a loura. Se uma repete as palavras da outra, como o aluno repete as do professor, harmoniza-se o todo como o do vosso belo canto coral, às margens de um lago.
Uma está mugindo como vaca, a outra balindo como cabra, esta é mosqueada, aquela é loura. Têm o mesmo nome, mas são diferentes na forma e modulam a voz de diferentes maneiras.
Brâmanes, que estais falando em tomo do lamaçal, como em festa noturna do Soma, ó rãs, o que festejais agora é o primeiro dia do ano das chuvas.
Brâmanes do soma, elas altearam a voz, no encantamento de cada ano. Oficiantes suados no aquecimento da panela, as rãs estão aparecendo, nenhuma fica no seu esconderijo.
Como se fossem homens, elas executam a divina cerimônia para o ano dividido em doze partes. Elas respeitam as estações. Quando vem a época das chuvas, não se aquecem os vasos do sacrifício.
Aquela que mugiu como vaca, a que baliu como cabra, a mosqueada, a loura, trouxeram-nos donativos. Na hora de esmagarmos as raízes, dêem-nos as rãs centenas de vacas, prolonguem a nossa vida!


63. Para achar-se um objeto perdido (idem)

Longe dos caminhos, longe do céu, longe da terra, nasceu Puschan, Entre essas duas abençoadas regiões, ele vai e vem, ele que sabe de tudo.
Puschan conhece todas as regiões celestes e conduz-nos pelo caminho mais certo; benfeitor, ardente, patrono dos heróis, onisciente, Proteja-nos, ó deus!
Ó Puschan, sob o teu patrocínio, estejamos isentos de danos. Aqui estamos, nós que te louvamos.
Que Puschan nos estenda a mão do lado do Oriente. Que ele nos traga aquilo que perdemos, Possamos achar o objeto perdido, sob o seu patrocínio!


64. Para livrar alguém do vício do jogo (idem)

Estonteiam-me as nozes trêmulas da grande árvore vibhidaka, as quais, trazidas pelos altos ventos, rolam com força na mesa.
Esposa fiel, não discutia nem se aborrecia comigo, era atenciosa para com os meus amigos e também comigo. Eu abandonei-a pelo dado fatal.
Odeia-o a sogra, rejeita-o a mulher. Implorando, não encontra ninguém que tenha pena dele. O jogador é inútil como o cavalo velho oferecido à venda.
Outros acariciam a mulher do jogador, cujos dados desperdiçam os seus haveres. Dizem-lhe o pai, a mãe, os irmãos: "Não o conhecemos, levem-no para a prisão".
"Se eu resolvo não jogar, meus amigos vão embora, abandonando-me. Mas logo que os dados transmitem o seu chamado, vou ao seu encontro como se fora um amante".
Trêmulo, o jogador entra na sala, perguntando a si mesmo: "Vou ganhar?" Os dados anulam a sua esperança, dando ao adversário os lances decisivos.
Em verdade, os dados têm pontas, ferem, derrubam, queimam, consomem. Presentes de príncipe, untados de mel para o jogador, frenéticos, eles recaem sobre o seu vencedor.
Os seus cento e cinqüenta companheiros, como o deus Savitri, jogam com a verdade. Não receiam a raiva do poderoso. O próprio rei respeita-os.
Rolam para baixo, saltam para cima. Não possuem mãos e no entanto dominam aqueles que as têm.
Brasas divinas lançadas à mesa, por mais frios que estejam, os dados incendeiam o teu coração.
Desprezada, a mulher do jogador atormenta-se e a mãe sofre pelo filho, que ela não sabe onde está. Endividado, trêmulo, buscando boa sorte, à noite, ele vai para a casa de outra pessoa.
Ele sente remorsos, o jogador, quando vê a esposa de um conhecido em casa bem arrumada. Se, pela manhã, ele atrelou os cavalos pretos, à tarde o pobre diabo vai cair no pátio.
Ao general do vosso grande exército, àquele que foi o primeiro rei do vosso clã, eu mostro os dedos abertos, eu juro que não escondi dinheiro atrás de mim.
Não jogues dados, cultiva o teu campo, alegra-te e aprecia o que possuis. Trata dos teus bois, jogador, cuida da tua mulher! Assim fala o nobre Savitri.
Faz um acordo conosco, se quiseres. Tem piedade, não atires sobre nós, a tua cruel, audaciosa imprecação! Acalme-se a tua raiva, a tua agressividade. Seja outra a vítima dos dados negros.


65. Fuxi e Nugua

No noroeste da China, a muitas milhas de distância existia um país chamado Hua-Xu-Xi onde reinava a felicidade. Não havia ali governo constituído e nem sequer a liderança de um chefe. Seu povo não possuía ambições ou desejos, tampouco inclinações. Viviam em estado natural e sua vida era longa. Percebiam através da neblina. O trovão não os ensurdecia, não afundavam na água e não se queimavam no fogo. Além disso deslocavam-se livremente pelo espaço. Habitavam a terra em condição divina.
Vivia nesta terra uma bela moça enamorada da floresta e da natureza. Certo dia, passeando em torno da lagoa encantada de nome Trovão, cujo senhor era o deus do trovão, o qual se apresentava com cabeça humana e corpo de dragão, deu-se um fato muito estranho. Ao longo do passeio pela floresta intensamente verde e plena de vibrações, localizou uma pegada gigantesca. Extasiada tocou com o pé aquela profunda marca e, ao pisá-la, num tempo mágico viu-se mãe de uma criança com a cabeça humana e o corpo de serpente, que recebeu o nome de Fu-Xi.
Fu-Xi veio a ser o filho do deus do trovão com uma mulher do país da felicidade terrestre. Na qualidade de semi-deus possuía livre trânsito entre o céu e a terra, beneficiando largamente os homens.
Criou os oito trigramas, traços organizados significando: céu, terra, água, fogo, montanha, trovão, vento e lagoa. Este sistema foi usado para expressar o sentido de diversos elementos, vindo a constituir a base da escrita.
Ensinou os povos a entrelaçar cordas para fazer redes, e assim aprenderam a pescar. Obteve a ajuda de Gou-Mang, deus da primavera, o qual mostrou como se apanhavam pássaros.
Fu-xi, mesmo não sendo o deus do fogo, conseguiu dominar o relâmpago e o trovão, produzindo o fogo e obtendo assim alimentos cozidos para o consumo.
Nü-Gua era uma deusa com cabeça de mulher e , corpo de serpente. Possuía o poder de transformar-se de setenta maneiras diferentes por dia. Solitária passeava pelos caminhos virgens do mundo, envolvida pela beleza e encanto da paisagem. Contudo abrigava em seu coração uma grande melancolia. Era o clamor de seu instinto materno, trazendo-lhe uma sensação de infinita tristeza e frustração. Em determinado momento, num ímpeto incontido, cavou barro do chão e com ele moldou uma figura humana. Surpreendeu-se com aquela pequena figura ganhando vida e movimento próprio, pulando, cantando e indo-se embora, levada por sua própria inquietação. Nü-Gua não coube em si de felicidade e com suas mãos continuou criando as figuras dentro do mesmo espírito de enlevamento até se cansar. Quando então tomou de um feixe de vime, entumesceu-o com barro e vibrou-o com energia. Os pingos caídos no chão milagrosamente se transformavam em seres humanos e em pouco tempo o mundo estava repleto.
Os seres nobres foram os criados pela mão de Nü-Gua. Quanto aos pobres, estes foram os lançados com o feixe de vime. Porém a natureza mortal desses homens obrigava a deusa a repetir constantemente o processo, tornando-o extremamente cansativo. Decidiu-se então pelo acasalamento dos seres para, através desta forma, se perpetuarem. Havendo estabelecido esta união, é chamada pelos chineses a Deusa do Matrimônio. Nü-Gua é a primeira mediadora entre homens e mulheres.


66. Huangdi, o deus do Meio

O centro do mundo era controlado pelo deus do meio. A área dessa região era de 12 mil milhas quadradas. Inicialmente o deus do meio era Huang-Di. Existia no entanto outro deus perverso, chamado Chi-You que havia escapado dos céus e concentrado todo seu esforço em criar a raça Miao. Deste feito maléfico resultou uma guerra na região de Zhou-Lu, na China Central. Huang-Di conseguiu superar o conflito, após o que deixou o posto de deus do meio para o deus do norte, Zhuan-Xu.
A primeira atitude de Zhuan-Xu foi interromper o percurso livre entre o céu e a terra. Os homens ficaram assim definitivamente separados dos deuses. Os primeiros não podiam subir mas os segundos ainda possuíam o poder para descer. Zhuan-Xu passou então a dois deuses chamados Zhong e Li, a incumbência de realizar este processo de obstrução das relações entre o céu e a terra. A Zhong cabia a tarefa de controlar o céu e sua entrada. A Li cabia o controle da terra. A perda da liberdade de acesso dos homens foi contudo compensada pela volta da ordem ao universo.
O filho de Li chamava-se Ye. Sua forma era estranha. A cabeça humana, não tinha braços e as duas pernas estavam na cabeça. Habitava numa montanha localizada no extremo oeste. O nome desta montanha era "Sol e Lua". Ye guardava o portão do céu, por onde entravam somente o sol, a lua e as estrelas. Vigiava as entradas e saídas e regulava os horários.
Os deuses não conviviam mais com os homens, tam- pouco o dia com a noite. E assim retornou a ordem ao universo.
Zhuan-Xu ainda estabeleceu a superioridade do homem em relação à mulher. Separou as funções dos sexos e proibiu os casamentos entre irmãos. Além disso, foi o primeiro deus a instituir o rito matrimonial.
Huang-Di morava no centro do céu. Seu auxiliar era o deus da terra. Este segurava nas mãos um fio com o qual controlava toda a vida e suas manifestações e media a justiça dos assuntos terrestres. Huang-Di possuía quatro faces. Podia contemplar simultaneamente as quatro direções. Controlava as relações entre os deuses. Huang-Di era o deus dos deuses.
O deus da terra, seu auxiliar, era igualmente o deus das manifestações elementares que habitavam o inferno. Por isso Huang-Di também controlava o inferno através do ministério do deus da terra.
Nas montanhas Kun-Lun havia um palácio luxuoso. Era o palácio de Huang-Di na terra. A quatrocentas milhas deste, havia um jardim denominado “Jardim Flutuante", situado tão alto que dele era possível passar-se ao céu. Huang-Di possuía ainda outro palácio no município de Xin-An na província de Hé-Nan, chamado "Montanha de Qing-Yao". Em cada um desses lugares havia um deus, permanentemente alerta. O deus que vigiava o palácio situado na montanha Kun-Lun, chamava-se Lu-Wu. Humano de rosto, corpo de tigre com nove caudas.
Pelo jardim flutuante zelava o deus Zhao-Yíng. Sua cabeça era humana, o corpo eqüino, a pele mosqueada e provido de duas asas.
O último deus cuidava da "'Montanha Qing-Yao" e seu nome era Wu-Luo. Seu rosto era humano, o corpo de leopardo e portava dois brincos nas orelhas que tiniam como jade. Nessas paragens existiam plantas, insetos e outros animais de um exotismo singular. Entre eles havia um mais enigmático ainda, chamado Shi-Rou, o que pode ser traduzido por "carne visível". Era um ser pastoso que ao viver, apresentava a forma de um pedaço de carne. Nada distinguia-se nele a não ser dois olhos pequeninos. O sabor de sua carne era ambrosíaco. Cortando qualquer parte dele, imediatamente se regenerava, permanecendo sempre do mesmo tamanho. Alimentavam-se dessa carne os viajantes e os anacoretas que viviam nas montanhas.
Certa ocasião, Huang-Di apresentou-se em Han-Sha, ao leste da montanha Kun-Lun. Na praia encontrou um animal chamado Bai-Ze que falava a língua dos homens e sabia tudo que havia entre o céu e a terra. Possuía grandes conhecimentos de teratologia, sendo um narrador de maravilhas e prodígios sem fim. Conhecia os lagos e as florestas. Huang-Di, sendo o controlador do universo, julgou de suma importância a atividade deste animal e através de auxiliares fez registrar e ilustrar tudo sobre o que discorria. Resultou dessas narrativas um livro contendo 11 mil e 500 curiosidades.
Naquele tempo o magnífico Huang-Di reunia em si, as harmonias e as monstruosidades. Viajava num carro luxuoso, decorado com pedras preciosas, puxado por dois elefantes, tendo à sua retaguarda seis dragões. Chi-You, com o poder de controlar os animais, corria na frente para limpar o caminho. Seguiam-se os deuses do vento e da chuva para limpar o pó. Ainda um robusto pássaro, chamado Bi-Fang, voava embaixo do carro. O deus do vento tinha cabeça de pássaro onde se salientavam dois cornos, corpo caprídeo, cauda ofídica e pele de leopardo. O deus da chuva era ainda mais estranho. De tão minúsculo, confundia-se com um bicho da seda.
Havia muitos deuses fantásticos no séqüito do carro de Huang-Di. Em cima voava uma fênix e embaixo de tudo havia uma cobra voadora. A magnificência desse cortejo aguçou a cobiça de Qu- You, que se revoltou com o intuito de ocupar o lugar de Huang-Di. O que resultou desta disputa será conhecido ao termo da história.
Huang-Di bondosamente modelou no mundo, carros, barcos, espelhos, caldeirões com três pés e um recipiente para ferver água. Também fez cruzamentos para obter mulas. Acrescentou a estes feitos o jogo e em especial os jogos de bola, e não se esqueceu - e aqui está a mais importante invenção - de projetar a bússola.
Os auxiliares de Huang-Di, potências demiúrgicas, continuaram a criação cumprindo ordens divinas. Entre eles, resultaram os mais importantes: Chang-Tie, criador das letras, Lei-Gong e Qi-Bo, que registraram as doenças e os correspondentes medicamentos e Lei-Zu, esposa de Huang-Di, que criou o bicho da seda e fabricou seda para o tear.


67. O País dos Imortais, do Shanhaijing (Clássico das Montanhas e dos Mares)

No decurso das suas viagens marítimas, Da Yu teve a oportunidade de visitar uns países onde viviam os imortais.
Segundo uma lenda, para além do Mar do Norte, havia uma ilha chamada Wu Ji (sem descendentes), os seus habitantes eram imortais e sem descendentes. Eles moravam em grutas, nas montanhas da ilha e comiam exclusivamente um tipo de peixe, desconhecido presentemente, que se chamava "peixe voante". Como os habitantes deste país eram assexuados, logicamente, não se casavam nem constituíam famílias. Após terem vivido um certo número de anos, os habitantes "morriam" temporariamente e, embora fosse prática comum, os seus cadáveres eram enterrados mas os seus corações continuavam a bater e os seus corpos não apodreciam. Depois de um período de gestação, de cerca de 120 anos, os "mortos" ressuscitavam e continuavam vivendo e assim iam vivendo e "morrendo" alternativamente; a população mantinha-se constante e o país era extremamente próspero.
Para além do Mar do Sul, havia uma outra ilha semelhante à primeira, chamada de A Xing, por todos os seus habitantes terem o mesmo sobrenome de A. A cor da sua pele era preta, e, fisicamente, eram bem constituídos, cheios de vigor e de juventude, e com o dom de poderem viver eternamente, por se alimentarem exclusivamente de frutos das árvores imortais e se refrescarem nas águas da Fonte Vermelha. Graças às árvores imortais e à Fonte Vermelha, os animais que viviam neste país eram, igualmente, imortais, existiam morcegos com mais de mil anos, sapos com dez mil e muitos outros.
Para além do Mar do Oeste, existiam, ainda, dois países dos imortais: o primeiro chamado de Huangdi e o segundo chamado dos Brancos. O Estado de Huangdi, estava situado, adjacente, à Montanha de Qingshan, sendo a fisionomia dos seus habitantes muito estranha, pois tinham cabeças humanas e corpos de jibóias. Segundo uma lenda, numa guerra que tinha outrora entre Huangdi e Chiyou, o povo deste país tinha ajudado os de Huangdi a vencerem o demônio de Chiyou ganhando assim méritos militares. Após a vitória, os habitantes de Huangdi construíram um outeiro ao qual chamaram de Outeiro de Huangdi, significando deste modo que ambos os povos deste país e de Huangdi, tinham saído igualmente vitoriosos sobre os de Chiyou. Os seus habitantes podiam, pelo menos, viver até 500 anos, sendo muitos os homens que contavam mais de dois mil anos de idade. Os habitantes do Estado dos Brancos tinham os seus cabelos e peles tão brancos como a neve e possuíam também uma prolongada longevidade. Segundo uma lenda, neste país viviam um gênero de animais sobrenaturais que se chamavam Cheng Huang e tinham o corpo coberto de pêlos dourados, uma longa e grossa cauda, fisionomia de raposa, dois chifres sobre o dorso e eram capazes de correr tão depressa como o vento, sendo, portanto, também apelidados de Fei Huang (Amarelos Velozes). Se alguém montasse um deles por só uma vez que fosse, já poderia viver, pelo menos, por mais dois mil anos. A origem do provérbio chinês que diz: "Que alcance a tua boa sorte com a velocidade de um Fei Huang" provém do conto acima mencionado.


68. As Ilhas dos Imortais, do Shanhaijing (Clássico das Montanhas e dos Mares)

Antigamente, os mares eram tão impetuosos, que as suas altíssimas ondas podiam alcançar o Céu e tão vastos, que milhares e milhares de rios desembocavam neles dia e noite - até mesmo as águas do Rio Celeste (Via Láctea) corriam para eles. No entanto, os mares nunca transbordaram. Porque é que os mares eram então assim? Uma lenda conta que a dezenas de milhares de li, a leste do Mar Bohai, havia um grande vale submerso chamado Gui Xu - que significa o "lugar de retorno das águas" -, na realidade tratava- se de um vale sem fim. Na vasta superfície marítima do "lugar de retorno das águas" havia cinco ilhas flutuantes de alcantiladas e majestosas montanhas: Daiyu, Yuanjiao, Fanghu, Yingzhou e Penglai. Para chegar aos píncaros de qualquer uma destas montanhas era preciso seguir serpentuosos caminhos - o menor dos quais tinha mais de trinta mil li -, que desembocavam em amplos planaltos - cada um com cerca de nove mil li de periferia. As cinco ilhas estavam alinhadas no mar, distanciadas umas das outras de setenta mil li, na lonjura, frações dos seus altos picos aparecendo entre nuvens auspiciosas e, nos tempos mais claros, podia-se mesmo ver os perfis dos seus magníficos pavilhões e palácios.
As ilhas eram conhecidas pelas cinco Ilhas dos Imortais, por nas suas cinco montanhas se situarem as residências dos imortais, constituídas por palácios e pavilhões de ouro e jade. Nas encostas das suas montanhas cresciam numerosas flores e raras árvores de fruto e todos os animais e aves que aqui habitavam, eram tão brancos como a neve. Uma árvore, em particular, produzia pérolas e uns frutos muito brilhantes, em forma de cristais, a ingestão de um só dos quais transformava qualquer ser humano num imortal. Todos os habitantes destas ilhas eram imortais e descendentes do Imperador Celestial possuindo os dons, quer de ascenderem às nuvens, ou de vagarem de ilha para ilha, conforme quisessem.
Embora a altitude de cada uma das montanhas fosse colossal, estas cinco ilhas eram flutuantes e deslocavam-se perpetuamente para o Oeste, como se fossem gigantescos navios, o que causava grande preocupação aos seus imortais habitantes, pois se continuassem na sua inexorável progressão, seriam arrastadas até ao pólo Oeste, o qual, segundo uma lenda, era um lugar extremamente frio e sombrio onde nunca tinha aparecido nem o Sol nem a Lua, sendo a sua única fonte de luz, uma tênue claridade proveniente de uma vela segura na boca dum animal chamado de "dragão da vela" Numa palavra, o pólo Oeste era um lugar avassalador!
Um dia, os imortais das cinco ilhas decidiram subir ao Céu para relatarem conjuntamente as suas preocupações ao Imperador Celestial. Depois de os ouvir, o Soberano enviou um dos seus ministros, o deus dos mares chamado Yu Jiang, resolver o problema. Yu Jiang mandou então que 15 gigantescas tartarugas carregassem, às costas, essas cinco ilhas para a eternidade, no entanto, para lhes aliviar o cansaço, o deus dividiu-as em três turnos alternando-os cada 60 000 anos. Claro que a missão de carregarem às suas costas as ilhas era um trabalho extremamente duro, mas as 15 tartarugas não tinham outra alternativa senão obedecerem às ordens de Yu Jiang e, assim, passaram a suportar as montanhas esticando as suas cabeças à tona das ondas e não se atrevendo a deslocarem-se minimamente. A partir de então as cinco ilhas, originalmente flutuantes, permaneceram estáticas desafiando as furiosas ondas, as impetuosas correntes e os freqüentes tufões e os seus imortais habitantes vivendo dias tranqüilos sem mais nenhumas preocupações.
Contudo, tal como os seres humanos, os imortais também vieram a encontrar alguns percalços imprevistos. A uma distância de 46 000 li da costa do Mar do Leste havia uma montanha chamada Bogushan ao pé da qual, havia um país de gigantes chamado, o Estado dos Dragões. Todos os seus habitantes eram tão altos que quase alcançavam o Céu e alimentavam-se principalmente de grandes peixes e tartarugas-gigantes marítimas.
Ora certo dia, alguns dos gigantes, tendo ido à pesca nas costas do Mar do Leste, subitamente aperceberam-se que algumas tartarugas gigantescas apareciam e desapareciam por entre as altas ondas marítimas esticando as suas cabeças fixamente. Bastavam-lhes dar alguns passos para atravessarem as águas duma longa distância lançando então as linhas com as iscas para as águas onde trabalhavam as tartarugas. As tartarugas, que não tinham comido nada durante várias dezenas de milhares de anos, ao verem alimento esticavam imediatamente os seus pescoços e tragavam as iscas. Então, aos gigantes do Estado dos Dragões bastou-lhes puxarem as linhas para as apanharem e depois de comerem as carnes secaram ainda os seus ossos fazendo-os em lascas e utilizaram as suas carapuças como tetos de tendas abrigando-se assim melhor contra o vento e a chuva. Logo após a morte das seis tartarugas duas das cinco ilhas, as Dayu e Yuanjiao, perdendo o seu suporte, recomeçaram a flutuar imediatamente em direção ao pólo Oeste. Os imortais destas duas ilhas apercebendo-se do que estava acontecendo, emigraram apressadamente para as outras que ainda se mantinham imóveis não tardando que, pouco tempo depois, ambas as ilhas Da-yu e Yuanjiao fossem arrastadas pelas impetuosas correntes e pelos incontáveis tufões para o pólo Oeste vindo-se a afundar nas profundezas marítimas.
O que aconteceu provocou tamanha cólera ao Imperador Celestial que, para castigar os gigantes do Estado dos Dragões e valendo-se dos seus poderes sobrenaturais, ele reduziu não só a ex- tensão deste pais como a estatura dos seus habitantes. Mesmo assim, diz-se que eles continuaram com uma altura de cerca de dez metros, a qual, se bem que fosse ainda considerável pelo menos impedia-os de pescarem à linha quaisquer outras tartarugas-gigantes.
A partir de então, no Mar Bohai restaram só três ilhas de imortais: Fanghu, Yingzhou e Penglai. No período dos Reinos Combatentes (475-221 aec.) os monarcas dos reinos de Qi e Yan vieram a saber da existência destas três ilhas dos imortais e de nestas se encontrar o elixir de imortalidade. Querendo gozar eternamente das glórias e riquezas que tinham acumulado, estes dois reis ordenaram aos seus súditos que fabricassem várias centenas de grandes embarcações e que partissem em demanda destas ilhas com o fim de obter o elixir de imortalidade. Contudo, pouco tempo após a partida da expedição, uma grande tempestade de gigantescas e furiosas ondas fez com que todos os barcos se afundassem, só poucos homens conseguiram escapar da tragédia. Segundo os relatos dos sobreviventes, após vários dias de navegação todos tinham efetivamente conseguido vislumbrar as três ilhas dos imortais pairando entre densas nuvens brancas e flutuando alinhadas nos confins do mar mas, quando os barcos se aproximaram delas, as três ilhas tinham misteriosa e subitamente desaparecido. E tinha sido quando os barcos persistiram em continuar na direção das ilhas desaparecidas, que uma tempestade furiosa se abateu bruscamente impedindo o avanço das embarcações e fazendo-as capotar no seio das altas ondas. Ninguém podia confirmar se esses relatos eram verdadeiros ou não, mas a verdade é que nenhum dos reis que tentaram obter o elixir de imortalidade veio a alcançar o seu objetivo e, naturalmente, acabaram por morrer uns após os outros.
Segundo a lenda, o imperador Qin Shi Huang - o primeiro imperador da Dinastia Qin - em plena satisfação pela sua unificação da China (221 a.C) também sonhava em ser um imortal. Sob os auspícios dos seus ministros e demais subordinados, ele viajou, pessoalmente, para a montanha Huiji organizando neste local uma enorme oficina, onde algumas dezenas de milhares de trabalhadores vieram a fabricar cerca de mil embarcações, após a sua conclusão, o monarca obrigou um número considerável dos seus homens a navegar em direção às ilhas dos imortais em busca do elixir da imortalidade. No entanto, este seu colossal empreendimento também não logrou obter bons resultados e, inclusivamente, nenhum dos seus enviados regressou à terra natal. Por ironia do destino o imperador Qin Shi Huang veio a morrer no caminho do regresso da montanha Huiji à sua capital.
Durante a Dinastia Han, no reinado de Wu Di (156-87 aec), um ocultista chamado Li Shaojun contou um dia ao imperador que, encontrando-se uma vez viajando numa rota marítima, tinha travado conhecimento com um imortal chamado An Qi Shen que estava comendo uma jujuba, tão grande como uma melancia, sendo o suco desta fruta realmente o elixir mágico das montanhas do além-mar. Impressionado pelas palavras do ocultista, o Imperador Wu Di ordenou que um exército de homens fabricasse embarcações, enviando depois um grande número dos seus subordinados nestas à procura do elixir da imortalidade. Contudo passaram-se meses e anos e até à sua morte o imperador esperou sem receber quaisquer notícias da expedição marítima.


69. Demônios e Feras Bestiais, do Shanhaijing (Clássico das Montanhas e dos Mares)

Durante uma prolongada viagem, Da Yu visitou nove continentes e atravessou quatro mares, no entanto, nem todos os lugares por onde passou eram acolhedores: na realidade, algumas destas regiões eram habitadas por demônios hostis e feras bestiais.
Na extremidade do Mar do Sul, havia uma região toda em chamas, habitada por demônios de cara humana e corpos peludos, monstruosos, que das suas bocas gigantescas lançavam constantemente labaredas e fumo, atacando, assim, os animais, as aves e mesmo os humanos.
Na costa do Mar do Sul havia, ainda, um país de homens-crocodilos tendo os seus habitantes uma cabeça humana, a bocarra dos crocodilos, o corpo coberto de densos pêlos pretos e, mais estranho ainda, dois gigantescos pés virados para trás. Se encontrassem alguém, primeiro lançavam uma terrível gargalhada para depois saltarem sobre o desgraçado engolindo-o por completo. Estes demônios vagabundeavam pelas florestas levando com eles flautas de bambu que tocavam produzindo uma melodia dolente.
Entre os países imaginários havia uns mais inacessíveis que outros, tais como: o dos homens zarolhos - cujos habitantes só tinham um olho localizado verticalmente no centro do rosto, o dos homens dos peitos furados, o dos homens com três cabeças - cujos habitantes podiam olhar em três direções ao mesmo tempo e pronunciar simultaneamente três vozes diferentes.
No que se refere às feras bestiais, os países imaginários possuíam numerosos e diversos gêneros, das quais só citaremos aqui algumas.
Havia umas chamadas Qiong Qi, semelhantes aos tigres, mas com duas asas gigantescas. Eram tão gananciosas quanto cruéis e quando conseguiam capturar um ser humano começavam a roê-lo pela cabeça e acabavam nos pés, engolindo mesmo todos os seus ossos e cabelos.
Havia um gênero de raposas com nove caudas aparentemente esbeltas e encantadoras, de focinho pontiagudo, pêlos dourados e espessas caudas, mas que, na realidade eram extremamente manhosas, podendo-se metamorfosear em terríveis criaturas, transformando-se, por vezes, em figuras de lindas jovens que atraíam os homens devorando-os depois.
Nas florestas das montanhas do Norte da China havia um gênero de borboletas vermelhas, do tamanho de elefantes, que sobre- viviam sugando o sangue de outros animais.
Uma outra fera bestial era um gênero de abelha venenosa de cor preta que, quando esvoaçava, emitia um zumbido que se transmitia a vários quilômetros de distância, sendo a sua picada muito dolorosa e o veneno dela, mortal.
Em certas regiões meridionais vivia à beira dos lagos um animal extremamente venenoso chamado Yu, que tinha apenas três polegadas de comprimento mas uma carapaça tão dura como uma tartaruga. Era um ser extraordinariamente sinistro e cruel que habitualmente se escondia nos lugares sombrios esperando a passagem de uma presa fácil. Se alguém passasse pelas vicinalidades donde estava emboscado, o animal abria a sua boca lançando um jato venenoso quer sobre a pessoa, ou no seu reflexo, na água, causando-lhe assim uma morte violenta. No entanto, graças à existência dum país adjacente a esta região, cujos habitantes eram bons caçadores, apreciavam comer a carne dos Yu conjuntamente com legumes, estes animais estavam em vias de extinção e os humanos estavam menos ameaçados.
Segundo umas lendas antigas, depois de dominar as águas, os povos de todo o mundo passaram a respeitar Da Yu como o salvador da humanidade, elegendo-o como o seu soberano. Para se precaver da latente ameaça dos demônios hostis e das feras bestiais aos seres humanos, Da Yu ordenou que todos os lugares onde se produziam objetos de ferro e bronze tinham que entregar uma determinada quantia das suas matérias-primas para com estas se fundirem nove trípodes gigantescos nos quais, baseando-se nas experiências e recordações de todas as suas viagens, ele fez cinzelar todas as figuras de demônios e feras bestiais assim corno as suas regiões de origem de modo a ajudar a humanidade a precaver-se melhor contra estes.


70. O Mundo antigo, por Zhuangzi

Aquele que sabe o que é do Céu e o que sabe o que é do Homem alcançou verdadeiramente o cimo (da sabedoria). Aquele que sabe o que é do Céu, molda sua vida segundo Céu. Aquele que sabe o que é do Homem, pode ainda usar sua ciência para desenvolver o conhecimento do desconhecido, vivendo até o fim de seus dias e não perecendo jovem. Eis a perfeição do saber.
Nisso, entretanto, há uma falha. O saber correto depende dos objetos, mas os objetos da ciência são relativos e incertos (mutáveis). Como se pode saber que o natural não é realmente do homem e o que é do homem não é realmente natural? Nós devemos, além disso, ter os homens verdadeiros antes de termos a ciência verdadeira.
Mas o que é o homem verdadeiro? O verdadeiro homem de antigamente não se aproveitava do fraco, não atingia seus fins pela força bruta, e não reunia ao redor de si os conselheiros. Assim, falhando, não tinha motivo para arrependimentos; sendo bem sucedido, nenhuma causa para satisfação própria. E podia subir a alturas sem tremer, entrar na água sem molhar-se e passar pelo fogo sem queimar-se. Eis a espécie de conhecimento que chega às profundezas de Dao. Os verdadeiros homens de antigamente dormiam sem sonhos e acordavam sem preocupações. Comiam indiferentes ao paladar e aspiravam fundamente o ar. Porque os verdadeiros homens aspiram o ar até os calcanhares; os vulgares até, apenas, a garganta. Da boca dos perversos as palavras são expelidas como vômitos. Quando as afeições do homem são profundas, seus dons divinos são superficiais.
Os verdadeiros homens antigos não sabiam o que era amar a vida ou temer a morte. Não se alegravam pelos nascimentos nem se esforçavam para evitar a dissolução vinham sem preocupações e partiam sem preocupações. Era tudo. Não se esqueciam de onde tinham surgido, mas não procuravam indagar quando voltariam para lá. Alegremente aceitavam a vida esperando pacientes pela redenção (o fim). Eis o que se chama não desencaminhar o coração de Dao, e não suprir o natural por meios humanos. A um homem desses chamar-se-ia com razão um homem verdadeiro.
Homens assim são de espírito livre e calmos no agir e têm testas altas. Algumas vezes são desconsolados como o outono, e outras animados como a primavera; suas alegrias e tristezas estão em razão direta com as quatro estações, em harmonia com toda a criação e ninguém pode conhecer-lhes o limite. E assim é que quando o Sábio assalaria a guerra, ele pode destruir um reino e sem perder contudo a afeição do povo; espalha bênçãos sobre todas as coisas, porém isso não é devido a seu (consciente) amor dos semelhantes. Portanto aquele que sente prazer em compreender o mundo material não é um Sábio. O que tem afeições pessoais não é humano. O que calcula o tempo de suas ações não é inteligente. O que desconhece a diferença entre o beneficio e o mal não é um homem superior. O que anda atrás da fama sob risco de perder o próprio eu não é um erudito. O que perde a vida e não é sincero para si mesmo, nunca pode ser mestre dos homens. Assim Hu Puxie, Wu Kuang, Po Yi, Shu Chi, Chi ci, Xu Yu, Chi To e Shentu Ti foram os servos dos governantes e cumpriram o mandato de outros e não o seu próprio.
Os verdadeiros homens de antigamente pareciam ser de estatura gigantesca e, contudo, não podiam ser abatidos. Portavam-se como se em si próprios faltasse alguma coisa, mas sem olhar para os outros. Naturalmente independentes de espírito, não eram severos. Vivendo em liberdade sem peias todavia não tentavam exibi-la. Pareciam sorrir quando quisessem e mover-se apenas segundo necessidade. Sua serenidade fluía da bondade interior. Nas relações sociais conservavam o caráter íntimo. De espírito tolerante, pareciam grandiosos; gigantescos pareciam acima de controle. Constantemente dentro de suas casas, pareciam portas fechadas; de espírito abstrato, pareciam ter esquecido o dom da palavra. Viam nas leis penais uma forma externa; nas cerimônias sociais, certos meios; na ciência, instrumentos de utilidade; em moralidade, uma guia. Eis a razão pela qual, para eles, as leis penais significavam uma administração misericordiosa; as cerimônias sociais, um meio de caminhar com o mundo; a ciência, uma ajuda para fazer o que não podiam evitar; e a moralidade, um guia que os podia fazer andar ao lado de outros para chegar a uma colina. E todos os homens pensavam realmente que eles sofriam para viverem corretamente.
Pois o que lhes prendia a atenção era o Único e o que não os preocupava era o Único também. O que consideravam como Único era Único e o que não consideravam como Único era Único outrossim. No que era Único, eles eram de Deus; no que não era Único, eram do homem. E assim, entre o humano e o divino não se produzia nenhum conflito. Eis o que era ser um homem verdadeiro.


71. O cofre guarnecido de metal, a história de uma previsão no Shujing (tratado dos livros)

Dois anos após a conquista de Shang o rei caiu doente e ficou muito desconsolado. Os dois outros grãos - duques disseram: "Consultemos reverentemente o casco de tartaruga a respeito do rei"; o duque de Zhou, porém, disse: "Não deveis afligir desse modo os nossos antigos reis". Chamou a si, então, o encargo e ergueu três altares de terra na mesma clareira; e, construindo outro altar ao sul destes, voltado para o norte, aí tomou posição. Havendo colocado um símbolo de jade, redondo, em cada um dos três altares e empunhando o símbolo maior da sua própria hierarquia, dirigiu-se aos reis Tai, Chi e Wen
O grande historiador escreveu em tábuas a sua prece, que assim rezava: [fulano], o vosso grande descendente, está sofrendo de moléstia grave e violenta; - se vós, três reis, tendes no Céu o encargo de velar por ele - grande filho do Céu, permiti que eu, Tan, seja o substituto da sua pessoa. Fui amorosamente obediente a meus pais; possuo muitas capacidades e arte que me tornam apto a servir a seres espirituais. O vosso grande descendente, por outro lado, não possui tantas capacidades e artes quanto eu e não é capaz de servir aos seres espirituais. E, além disso, foi nomeado na casa de Deus para estender o seu auxilio por todo o reino, visando estabelecer aqui na terra os vossos descendentes. O povo dos quatro quadrantes permanece em reverente temor dele. Oh! Não permiti que esse mandato precioso, conferido pelo Céu, caia por terra - para que toda a longa linhagem dos nossos antigos reis também possua alguém em quem possa confiar sempre, quanto aos nossos sacrifícios. Agora, buscarei a vossa determinação a respeito do assunto, no grande casco de tartaruga. Se atenderdes o meu pedido, tomarei desses símbolos e dessa maça, retornarei e aguardarei as vossas ordens. Se vós não o atenderdes, eu os deixarei de lado".
Então, consultou o duque os augúrios, através dos três cascos de tartaruga. E foram todos favoráveis. Abriu, com uma chave, o lugar onde estavam guardadas as respostas oraculares e as contemplou. Elas foram igualmente favoráveis. Disse ele: "Segundo a forma do prognóstico o rei não sofrerá mal algum. Eu, pobre criança, consegui junto aos três reis a renovação do seu mandato, aos quais um longo futuro foi consultado. Devo, agora, aguardar as conseqüências. Eles poderão agir em favor do nosso Primeiro Homem".
Quando o duque regressou, colocou as tábuas da oração num cofre guarnecido de metal e, no dia seguinte, o rei melhorou.
Mais tarde, com a morte do Rei Wu, o irmão mais velho do duque de Kuan e os seus irmãos mais moços propalaram pelo reino um relatório sem fundamento para que o duque não fizesse nenhum benefício ao jovem filho do rei. Diante disso o duque declarou aos outros grãos duques: "Se eu não aplicar a lei a esses homens, não poderei apresentar o meu relatório aos antigos reis".
Ele residiu assim no oriente, dois anos, durante os quais os criminosos foram presos e levados perante a justiça. Depois, compôs um poema para apresentar ao rei e o denominou: "A coruja". O rei, por seu turno, não ousou censurar o duque.
No outono, quando o grão era abundante e maduro, porém, antes de ser colhido, o Céu enviou uma grande tempestade de trovão e relâmpagos, acompanhada de ventos, quebrando-se todo o grão e sendo desarraigadas grandes árvores. O povo ficou muito atemorizado; o rei e os altos funcionários, todos com seus capacetes de autoridade, puseram-se a abrir o cofre guarnecido de metal e a examinar os escritos nele contidos, encontrando as palavras pronunciadas pelo duque, quando ele chamou a si o encargo de ser o substituto do Rei Wu. Os dois grãos duques e o rei interromperam o historiógrafo e todos os outros funcionários familiarizados com a questão. Eles replicaram: "Foi realmente assim: mas, ah! o duque nos ordenou que não ousássemos falar a esse respeito". O rei tomou o documento nas mãos e chorou, dizendo: "Nós hoje não precisamos ir reverentemente proceder à adivinhação. Outrora o duque foi assim zeloso da casa real; mas, sendo uma criança, não o soube. Hoje o Céu mobilizou os seus terrores para exibir-lhes a virtude. Que eu, pobre criança vá agora ao seu encontro com as minhas opiniões e sentimentos renovados, eis o que exigem as normas de propriedade do nosso reino".
Quando o rei se dirigia às fronteiras ao encontro do duque, o Céu enviou chuvas; e, em virtude de ventos contrários, todo o grão se ergueu. Os dois grãos duques deram ordens ao povo para que levantasse as árvores que haviam caído e as substituísse. O ano, então, tornou-se muito frutuoso.


72. Uma previsão do Tratado das mutações: Hexagrama 18, a Recuperação do Deteriorado, do Yijing

Sun (o Vento, embaixo) sopra ao pé da Montanha (Ken). Isto implica em destruição; plantas desenraizadas, pomares arruinados. Mas o tempo indicado pela primavera (Sun) seguindo-se ao inverno (Ken) indica a mudança. Indica também trabalho duro. Em negócios, comunidades, relações, etc., estabelecidos, Sun indica arranjos fundamentalmente maus ou incompatíveis.

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O Julgamento
A Recuperação do Deteriorado possui um supremo sucesso. É vantajoso cruzar as grandes águas. Antes de começar, três dias; Depois de começar, três dias.

A Imagem
O Vento soprando ao pé da Montanha simboliza a Deterioração. Assim, o homem nobre movimenta o povo E fortifica seu espírito.

As Linhas
Seis no fundo: a ruma acarretada pelo pai é reparada pelo filho. Se tiver sucesso, o pai não ficará desonrado. Perigo, ao fim, fortuna.
Nove no segundo lugar: ao reparar o que foi deteriorado pela mãe, não se deve ser muito persistente.
Nove no terceiro lugar: reparar o que foi deteriorado pelo pai. Algum remorso, mas não haverá desonra considerável.
Seis no quarto lugar: tolerar o que foi deteriorado pelo pai. Ao continuar, é-se humilhado.
Seis no quinto lugar: reparar o que foi deteriorado pelo pai, Encontra-se elogio.
Nove no alto: ele não serve a sacerdotes e reis,- ele se fixa objetivos superiores.


73. Invocação ao ancestral da dinastia Shang, Tang

Admirável! Perfeito! Aqui estão nossos tambores. Harmoniosos ressoam os tambores. Para deleitar nosso venerável antepassado.
O descendente de Tang com esta música o invoca. Pois ele pode aliviar-nos pela realização de nossos desejos. Profundo é o som de nossos tambores. Agudas soam as flautas. Todas entre si se harmonizam e se combinam. Em acordo com as notas da gama sonora. Oh! O descendente de Tang é majestoso. Verdadeiramente admirável é a sua música.
Os grandes sinos e os tambores enchem os ouvidos. As danças desenvolvem-se grandiosamente. Temos admiráveis visitantes que se mostram deleitados. Desde a Antigüidade, antes de nossa época, os primeiros homens nos deram exemplo. Como ser mansos e humildes de manhã à noite. E ser reverente no desempenho do serviço.
Ele pode contemplar nossos sacrifícios do Inverno e do Outono. Oferecidos assim pelo descendente de Tang!


74. Uma antiga cura para depressão, no Liezi

Yang Chu tinha um amigo, de nome Chi Liang. Um dia Chi Liang caiu doente, e ao cabo de sete dias ficou muito sério. Os filhos choravam à beira da cama e chamaram um doutor.
— Tenho filhos tão indignos, — disse Chi Liang a Yang Chu. — Não queres cantar uma canção para os fazer compreender?
Então Yang Chu cantou:

O céu não sabe
Por que é assim,
Como podemos, os homens,
Adivinhá-lo então?
O infortúnio vem
Nos caminhos do céu,
Passe bem ou mal,
É o homem quem paga.
Nem tu nem eu
Sabemos o que é gota,
Pode então a feiticeira
Ou o doutor
Saber o que isso é?

Os filhos de Chi Liang ainda não conseguiram entender, e chamaram três doutores. O nome de um era Chiao, o segundo chamava-se Yu e o terceiro Lu. E o médico Chiao disse a Chi Liang:
— Não vives convenientemente. A tua doença vem da fome, da comida demasiada e dos excessos sexuais. O teu espírito está atormentado. Isso não é devido ao céu nem aos maus espíritos. Embora o caso seja sério, pode haver cura.
Disse Chi Liang:
— É um doutor vulgar. — e mandou-o embora.
Disse o doutor Yu:
— Sofres de uma constituição fraca e não foste convenientemente criado na infância. Não é questão de dias, mas de anos. Não há cura.
E disse Chi Liang:
— É um bom doutor. Dai-lhe de comer.
O doutor Lu disse:
— A tua doença não vem do céu, nem dos homens, nem dos maus espíritos. Houve alguém que a dirigiu quando ainda estavas no ventre de tua mãe, e houve alguém que a conhecia. Para que servem os remédios?
Disse Chi Liang:
— É um doutor divino, — e despediu-o com valiosos presentes. E Chi Liang logo ficou bom sozinho.

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