A ciência de registrar o passado




Enquanto a Índia não possuía nenhuma concepção histórica desenvolvida, em função da sua crença firme na questão da realidade transcendente (e que este mundo material seria uma incessante repetição de padrões), a China desenvolveu uma fixação pela história como ciência, ensejando a evolução de métodos e teorias até os dias de hoje. Por isso, esta seção se apresenta de modo díspar: pela Índia, um extrato do Vishnu purana nos dá uma idéia do que era a história para os indianos nas épocas antigas – simplesmente contos, apólogos, que nós chamaríamos mesmo de lendas, mas que para os indianos tinha valia se contivesse alguma forma de ensinamento espiritual – ou seja, a história se afirmava por acontecimentos inéditos e divinos merecedores de serem lembrados por seus conteúdos religiosos. Do outro lado, a China apresenta-nos uma tradução histórica devidamente assentada na avaliação moral, na pesquisa das fontes e na reflexão ativa e explicativa. O primeiro destes historiadores teria sido o próprio Confúcio, seguido depois por outros autores até a aparição de Sima Qian, o grande ideólogo dos métodos históricos chineses. Nesta relação, vemos primeiramente um trecho do Chunqiu (primaveras e outonos), crônica seca organizada por Confúcio, que necessitou posteriormente de comentários explicativos, como o do zuozhuan. Sua função era organizar as datas dos principais eventos, buscando depois ilustrá-los com análises morais. O shujing (tratado dos livros) é a coletânea de discursos e acontecimentos importantes do passado chinês, reorganizados pelo mesmo Confúcio; o zhanguoce, uma coleção de histórias posteriores, foi coligida nos tempos dos estados combatentes (471-221 aec), não tendo um autor definido; por fim, Sima Qian, da dinastia Han, apresenta-nos uma biografia, cuja análise do personagem principal guarda o sentido do texto; uma análise filosófica e moral da realidade, com fins educativos.



96. A Agitação do Oceano Pelos Deuses, no vishnu purana

Sendo assim instruídas pelo deus dos deuses, as divindades entraram em aliança com os demônios; e conjuntamente compreenderam a aquisição da bebida da imortalidade. Reuniram diversos tipos de ervas medicinais e jogaram-nas no mar de leite, cujas águas eram radiantes como as nuvens finais e brilhantes do outono. Depois, tomaram o monte Mandara por bastão, a serpente Vasuki por corda e começaram a agitar o oceano para conseguir a Ambrosia. Os deuses reunidos foram colocados por Krishna na cauda da serpente; os daityas e danavas (a), em sua cabeça e pescoço. Tostados pelas chamas emitidas de seu capuz inflado, os demônios foram tosquiados de sua glória; enquanto as nuvens, levadas para sua cauda pelo hálito de sua boca, refrescavam os deuses com lufadas reconfortantes. Em meio ao mar lácteo, o próprio Hari (b), na forma de uma tartaruga, serviu como pivô para a montanha enquanto a mesma era girada. O portador da maça e disco (b) estava presente, em outras formas, entre os deuses e demônios e ajudou a arrastar o monarca da raça de serpentes; e em outro corpo vasto, sentou-se no cume da montanha. Com uma porção de sua energia, invisível a deuses e demônios, sustentou o rei as serpentes e com outra infundiu vigor aos deuses.
Do oceano, agitado assim pelos deuses e Danavas, surgiu primeiro a vaca Surabhi, a fonte de leite e coalhos, adorada pelas divindades e contemplada por elas e seus companheiros com mentes perturbadas e olhos brilhando de prazer. Então, enquanto os Santos no céu imaginavam o que isto podia ser, surgiu a deusa Varuni,(c) com olhos agitados pela embriaguez. Em seguida do redemoinho das profundezas surgiu a árvore Parijata,(d) o deleite das ninfas no céu; perfumando o mundo com suas flores. Foi produzida então a tropa dos apsararas,(e) de surpreendente beleza, dotada de encanto e bom gosto. Surgiu em seguida a lua de raios frios, sendo tomada por Mahadeva;(f) e depois foi engendrado o veneno pelo mar, do qual as najas (g) tomaram posse. Dhanvantari, vestido de branco e trazendo na mão a taça de ambrósia, veio em seguida e em sua contemplação os filhos de Diti e de Danu,(h) bem como os ascetas, se encheram de satisfação e prazer.
Depois, sentada numa flor de lótus e segurando um nenúfar em sua mão, surgiu das ondas a deusa Shri,(i) radiante de beleza. Extasiados, os grandes sábios a homenagearam com hinos na canção em seu louvor, Vishvavasu (j) e outros coristas cantaram e Ghrtaci e outras ninfas celestes dançaram em seu redor. Ganga e outras correntes santas se apresentaram para suas abluções, e os elefantes dos céus, tomando suas águas puras em vasos de ouro, derramaram-nos sobre a deusa, a rainha do mundo universal. O mar de leite pessoalmente presenteou-a com uma coroa de flores perenes e o artista dos deuses a decorou com ornamentos celestes. Assim banhada, vestida e adornada a deusa, à vista dos celestiais, atirou-se sobre o peito de Hari, e ali reclinada voltou os olhos para as deidades, que se inspiraram extasiadas com seu olhar.
Não aconteceu assim com os daityas,(k) que com Vipracitti à sua frente, encheram-se de indignação quando Vixnu se afastou deles, e foram abandonados pela deusa da prosperidade.
Os daityas poderosos e indignados tomaram então à força a taça de Ambrósia que estava nas mãos de Dhanvantari. Mas Vixnu, assumindo forma feminina, fascinou-os e iludiu-os e retomando a taça, entregou-a aos deuses. Shakra (l) e as demais deidades embarcaram a
Ambrósia. Os demônios irritados, empunhando suas armas, caíram sobre eles, mas os deuses, em quem a força da Ambrósia infundira vigor novo, derrotaram e puseram seu anfitrião a fugir, e eles escaparam pelas regiões do espaço, mergulhando nos reinos subterrâneos. Com isso os deuses se rejubilaram, prestaram homenagem ao portador da maça e do disco, (b) e retomaram seu reino no céu. O sol brilhou com esplendor renovado e retomou a tarefa que lhe fora atribuída; e os luminares celestes novamente giraram em suas respectivas órbitas. O fogo mais uma vez ardeu, belo em seu esplendor; e as mentes de todos os seres foram animadas pela devoção. Os três mundos foram novamente tornados felizes pela prosperidade e Indra, o chefe dos deuses, restaurado em seu poder. Sentado em seu trono e mais uma vez no céu, exercendo soberania sobre os deuses, Shakra (l) elogiou a deusa que traz um lótus em sua mão. Louvada, a agradecida Shri, morando em todas as criaturas e ouvida por todos os seres, respondeu ao deus dos cem ritos(l)
"Estou feliz, monarca dos deuses, por tua adoração. Pede de mim o que quiseres. Eu vim para satisfazer teus desejos". "Deusa", replicou Indra, "se tu acederes às minhas orações; se sou digno de tua generosidade, que seja este o meu primeiro pedido - que os três munos jamais sejam novamente privados de tua presença. Minha segunda súplica, filha do oceano, é que não esqueças aquele que celebre teus louvores nas palavras que te dirigi". "Eu não abandonarei os três mundos outra vez”, respondeu a deusa. "Este teu primeiro pedido é satisfeito, pois estou feliz por teus louvores. Além disso, jamais virarei o rosto para o mortal que, de manhã e de tarde, repetir o hino com que te dirigiste a mim".

a) Duas classes de demônios.
b) Vixnu.
c) A deusa do vinho.
d) Árvore paradisíaca.
e) Ninfas do céu.
f) Xiva.
g) Deidades das serpentes.
h) Demônios.
i) Divindade feminina da glória e Prosperidade.
J) Chefe dos Gandharvas, classe de semideuses.
k) Demônios.
l) Indra, chefe dos deuses.


97. Uma passagem do Chunqiu (primaveras e outonos), comentada pelo zuozhuan de zuoqiuming

"Na primeira lua da primavera do nono ano do seu reinado, o duque de Chuang derrotou o exército do estado de Qi em Chang Cho".

Comentário do zuozhuan: Tendo o estado de Qi declarado guerra ao nosso estado, e estando o nosso duque preparado para iniciar a campanha, apareceu um homem chamado Kuei a pedir uma audiência. Disseram-lhe os seus conselheiros:
- Os oficiais já decidiram sobre as estratégias a adotar. Que papel pensas desempenhar nesses planos? - Eles não passam de um grupo de incompetentes, que não têm a menor idéia do que sejam planos secretos. Kuei acabou por ser levado a presença do duque, e imediatamente interrogou: "Que forças dispõe vossa alteza para fazer a guerra?
- Nunca monopolizei alimentação e roupas, sempre as partilhei com todos - respondeu o duque.
- Isso não passou de um pequeno favor, compartilhado apenas por alguns. O povo não o acompanhará, fiado apenas nesse motivo.
- Bem - continuou o duque - nos sacrifícios aos deuses, confiei mais na sinceridade do coração do que no fausto das aparências.
- Também isso constitui uma razão insuficiente. Os deuses não abençoarão as vossas armas baseados apenas nessa desculpa.
- Nas investigações judiciais, ainda que fosse difícil dar com a verdade, tomei decisões sempre de acordo com provas que me foram apresentadas.
- Também isso está longe de lhe dar a certeza de confiar no povo, e pode comprometer o resultado da guerra por causa disso. Peço-lhe, assim, para o acompanhar na sua campanha.
A isto o duque acedeu, levando Kuei na sua própria carruagem.
A batalha travou-se em Chuang-Cho. E à vista do inimigo, o nosso duque deu sem demora as suas instruções para se iniciar o ataque, mas Kuei advertiu:
-Ainda não.
E só quando os tambores do inimigo rufaram três vezes é que Kuei aconselhou a não atacar.
E o duque prontamente deu ordens para os perseguir, mas Kuei tornou a dizer:
-Ainda não.
Apeou-se da carruagem, e estudou cuidadosamente os trilhos dos carros adversários. E só depois de examinar tudo com os seus olhos, gritou:
- Agora.
E o duque deu ordem então para perseguir os inimigos.
Quando a batalha foi totalmente ganha, o duque pediu a Kuei uma explicação da sua tática.
- Uma batalha - respondeu este - depende inteiramente, e acima de tudo, do ardor dos combatentes. Ao primeiro sinal do tambor, o ardor do inimigo estava violentamente excitado. Com o segundo, começou a atenuar-se. E com o terceiro, entrou em exaustão. Então, quando o ardor do inimigo chegou a essa fase, estavam os nossos no auge do seu ardor.
Assim os vencemos. Mas, contra uma formidável força inimiga, deve estar-se preparado para tudo. Receava uma emboscada. Mas verifiquei pelos trilhos das carruagens, que a retirada foi feita em visível desordem. Reparei igualmente nos seus pendões, e concluí que se agitavam também em confusão. Portanto, aconselhei que só nessa altura se perseguisse o inimigo".


98. O Canon de Yao, do shujing

Disse o Ti: "Quem procurará para mim um homem de acordo com a época, a quem eu possa elevar e empregar? Fang - chi disse: "O vosso filho e herdeiro Chu é muito esclarecido". Disse o Ti: "Ah! ele é insincero e turbulento; - poderá satisfazer?"
Disse o Ti: "Quem procurará para mim um homem à altura das exigências dos meus negócios?" Huan- tao disse: "Oh! os méritos do Ministro de Obras acabaram de ser exibidos em larga escala". Disse o Ti: "Oh! ele fala quando tudo é calmo; mas, quando trabalha, as suas ações se exprimem de modo diferente. Só é respeitoso na aparência. Vede! as inundações molestam os Céus!"
Disse o Ti: "Oh! Presidente das Quatro Montanhas, as águas da enchente são destruidoras no seu transbordar. Na sua vasta extensão, abarcam os montes e sobem além das grandes alturas; ameaçam os Céus com a inundação, que o povo até resmunga e murmureja! Haverá um homem capaz a quem eu possa encarregar de corrigir essa calamidade?" Todos na corte disseram: "Ah! pois não existe Kun?" Disse o Ti: "Ah! como ele é perverso! Desobediente às ordens, procura prejudicar os seus pares". Disse o Presidente das Montanhas: "Sim, mas... experimentarei para ver se ele consegue realizar o trabalho". E assim Kun foi empregado. Disse-lhe o Ti: "Ide e sede reverente!" Ele labutou durante quatro anos, mas a obra não se realizou.
Disse o Ti: "Oh! Presidente das Quatro Montanhas, estou ocupando o trono há setenta anos. Vós podeis executar as minhas ordens; abdicarei do meu cargo em vosso benefício". Disse o chefe: "Eu não possuo a virtude; - eu desgraçaria o vosso cargo". Disse o Ti: "Apontai-me alguém entre os ilustres ou indicai-me alguém entre os pobres e os humildes". "Todos então disseram ao Ti: "Existe, entre a gente de condição inferior, um homem solteiro chamado Shun de Yü". Disse o Ti: "Sim, ouvi falar nele. Que tendes a dizer a seu respeito?" Disse o Chefe: "Ele é filho de um cego. O pai era obstinadamente inescrupuloso; a madrasta, insincera; o irmão unilateral, xiang, arrogante. Ele conseguiu, entretanto, com a sua piedade filial, viver em harmonia com eles e os levar, gradualmente, ao domínio de si mesmos. Assim, eles já não se tornam cada vez mais perversos". Disse o Ti: "Eu o experimentarei; eu o casarei e, desse modo, verei qual o seu comportamento para com as minhas duas filhas". E assim preparou e enviou as duas filhas ao norte de Kuei para serem esposas (a família) de Yü. O Ti lhes disse: "Sede reverentes !"
E eles chegaram a ser universalmente observados. Nomeado Governador Geral, foram providenciados os negócios de cada departamento oficial, nas épocas oportunas. Encarregado de receber os príncipes dos quatro quadrantes da terra, todos se mostraram docilmente submissos. Enviado às grandes planícies ao sopé das montanhas, não se perdeu, apesar das tempestades de vento, trovão e chuva.
Disse o Ti: "Aproximai-vos, Shun. Eu vos consultei a respeito de todos os negócios, meditei nas vossas palavras e verifiquei que podem ser postas em prática; - subireis, durante três anos, ao trono do Ti". Shun desejou declinar em favor de alguém mais virtuoso e não consentir em ser o sucessor de Yao. No primeiro dia do primeiro mês, entretanto, aceitou a abdicação de Yao dos seus encargos, no templo do Ancestral Instruído.
Examinou a esfera giratória adornada de pérolas, com o seu tubo transverso de jade e reduziu a um sistema harmonioso os movimentos dos Sete Diretores.
Em seguida, sacrificou de modo especial ao Céu, embora segundo as fórmulas usuais; sacrificou, com reverente pureza, aos Seis Honrados; ofereceu os devidos sacrifícios aos montes e rios; e estendeu a sua adoração às Hostes de espíritos.
Convocou todos os cinco símbolos de jade da hierarquia; e, acabado o mês, deu audiência diária ao Presidente das Quatro Montanhas e a todos os Pastores, devolvendo finalmente aos vários príncipes os seus símbolos.
No segundo mês do ano, realizou uma viagem de inspeção rumo a leste, até Tai- chung, onde apresentou aos Céus uma oferenda ardente e sacrificou na devida ordem aos montes e rios. Em seguida, deu audiência aos príncipes do oriente. Estabeleceu harmoniosamente as suas estações e os seus meses e regulou os seus dias - uniformizou os tubos- padrão, com as medidas de comprimento e capacidade e as jardas de aço; regulamentou as cinco classes de cerimônias, com os vários artigos de introdução - os cinco símbolos de jade, as três qualidades de seda, os dois animais vivos e o morto. Quanto aos cinco instrumentos da hierarquia, devolveu-os quando tudo estava terminado. No quinto mês, fez uma viagem semelhante rumo ao sul, até as montanhas do meio-dia, onde celebrou as mesmas cerimônias de Tai. No oitavo mês, fez uma viagem rumo a oeste, até as montanhas do ocidente, onde procedeu como dantes. No décimo primeiro mês, fez uma viagem rumo ao norte, até as montanhas do setentrião, onde celebrou as mesmas cerimônias do ocidente. Regressou então à capital, dirigiu-se ao templo do Ancestral Cultivado e sacrificou um único touro.
No decurso de cinco anos, houve uma viagem de inspeção e quatro comparências dos príncipes à corte. Estes apresentaram relatórios verbais do seu governo, claramente comprovados pelos seus trabalhos. Receberam carros e vestes segundo os méritos de cada um.
Instituiu a divisão da terra em doze províncias, nelas erguendo altares no alto de doze montes. Também aprofundou os rios.
Expôs ao povo as punições estatutárias, promulgando o banimento como forma de mitigação das cinco grandes penas; o chicote a ser empregado pelos tribunais de magistrados, a vara a ser usada nas escolas e o dinheiro a ser recebido pelos delitos resgatáveis. Seriam perdoados os delitos por inadvertência e os que pudessem ser atribuídos à infelicidade; mas as pessoas que violassem as leis, presunçosa e repetidamente, seriam punidas de morte. "Que eu seja reverente! Que eu seja reverente!" dizia ele a si mesmo. "Que a compaixão reine em matéria de punições".
Baniu o Ministro de Obras para a ilha de Yü; confinou Huantao ao Monte Chung; impediu o chefe de San- Miao e o seu povo para San wei e aí os conservou; e manteve Kun prisioneiro até a morte, no Monte Yü. Assim tratados esses quatro criminosos, todos na face da terra reconheceram a justiça da administração de Shun.
Decorridos vinte e oito anos, faleceu o Ti: então o povo o pranteou durante três anos, como a um pai. Quedaram e emudeceram as oito qualidades de instrumentos de música compreendidas nos quatro mares. No primeiro dia do primeiro mês do ano seguinte, Shun foi ao templo do Ancestral Instruído.
Deliberou com o Presidente das Quatro Montanhas sobre a maneira de manter abertas as portas de comunicação entre ele próprio e os quatro quadrantes da terra e a respeito de como poderia ver com os olhos e ouvir com os ouvidos de todos.


99. Contra os áulicos sistemáticos, do zhangguoce, ou Discursos dos estados combatentes

O Rei Wei, de Qi, vivia inteiramente cercado de cortesãos que lhe afagavam a vaidade e seguiam seus caprichos. Certo dia, Zou Chi disse ao rei:
— Majestade, não sou exatamente de má aparência. (Era homem de “oito pés” de altura). Mas, no norte da cidade, há um Sr. Shu, famoso por seu belo aspecto. Um dia, fiquei em frente ao espelho e perguntei a minha mulher: “Quem achas mais bonito, eu, ou o Sr. Shu?” “Tu, naturalmente”, respondeu minha mulher. Não ousei basear-me em sua palavra e fiz a mesma pergunta à minha concubina. “Como pode o Sr. Shu comparar-se contigo?”, foi sua resposta. Na manhã seguinte, chegou um visitante e, após uns instantes, fiz-lhe a mesma pergunta; ele respondeu: “O Sr. Shu não pode comparar-se contigo”. No dia imediato, o próprio Sr. Shu foi visitar-me. Examinei-o cuidadosamente e achei que ele era muito mais bonito do que eu. Olhei-me bem ao espelho e fiquei inteiramente convencido de que eu não me podia comparar a ele. Assim, deitei-me em minha cama e pensei: minha mulher me louva, porque é parcial em relação a mim; minha concubina me louva, porque tem medo de mim; meu amigo me louva, porque tem algo a pedir-me. Ora, Qi é um reino de mil li quadrados, com cento e vinte cidades. todas as damas e todos os servidores do palácio são parciais em relação a Vossa Majestade. Todos os cortesãos têm medo de seu poder. E todo o povo tem alguma coisa a pedir-lhe. Assim, parece-me difícil que Vossa Majestade consiga ouvir a verdade.
— Dizes bem — respondeu o rei. Então, baixou um decreto: ‘Todos os ministros, funcionários e pessoas comuns que puderem mostrar meus enganos receberão a mais alta classe de recompensas. Os que escreverem cartas para aconselhar-me receberão a recompensa de segunda classe. E os que puderem criticar-me e a meu governo na praça do mercado, de modo que isso me chegue aos ouvidos, receberão a recompensa de terceira classe”.
Baixado o decreto, viu-se o rei inundado por uma torrente de conselhos e a corte ficou repleta de gente. Isso continuou por vários meses. Um ano depois, não havia erro do governo que não tivesse sido considerado e apontado por alguém. Os países vizinhos, Yen, Chao, Han e Wei, souberam do que o rei fizera e acabaram reconhecendo o Estado de Qi como seu dirigente. Isso é o que se chama ganhar a guerra sem sair de casa.


100. A Vida de Po Yi, por Sima Qian, no shiji (recordações históricas)

Certas pessoas dizem (citando o Livro da História): “o Céu é imparcial. Está com os homens que andam na retidão”. Nós diríamos que Poyi e Shuchi eram homens retos, não é verdade? Eram homens de grande força de caráter e de rígidos princípios; contudo, morreram de fome! Além disso, dos setenta discípulos de Confúcio, o que recebeu dele o mais alto louvor como verdadeiro amante do estudo foi Yen Huei. No entanto, Huei sempre foi pobre, comendo grosseiras refeições sem queixar-se, e morreu jovem! É assim que Deus recompensa os bons? Por outro lado, vemos o famoso bandido Chih, que matava inocentes, comia fígado humano e asso¬lava o país com milhares de sua quadrilha, assassinando e roubando; e morreu de morte natural, em idade avançada! Que fez para merecê-lo? Esses são exemplos do passado, bem conhecidos. Nos dias atuais, vemos pessoas que infringem a lei e cometem atos contrários à justiça ficarem ricas, levando vida confortável, e suas famílias continuam a gozar de fausto e prosperidade. Outros, por outro lado, observam os mais severos princípios, voltam as costas aos atalhos para o êxito, sendo, ainda, cuidadosos com suas palavras e só falando movidos por amor ao bem público, quando há uma grande injustiça. Incontável, todavia, é o número de tais pessoas que sofre desastres pessoais. É este o caminho do céu, de que o povo fala? Ou será o contrário? Tenho grandes dúvidas a tal respeito.
Confúcio diz: “Os que não acreditam nas mesmas coisas não podem ter trato entre si”; com isto, quer dizer que tudo quanto se pode fazer é apenas seguir as próprias convicções. Eis por que Confúcio disse de si mesmo: “Eu gostaria até de puxar uma carroça se soubesse que, assim fazendo, ficaria rico por meu próprio esforço. Como não posso ter certeza, farei o que gosto de fazer”. E diz mais: “Quando chega o inverno, verifica-se que os pinheiros e os ciprestes suportam melhor o frio”. Quem tem coração puro mantém-se firme num mundo de corrupção geral. Sabe o que mais preza e desdenha o resto.
“Um cavalheiro detesta morrer sem deixar nome para a posteridade” (diz Confúcio). E Chiatse diz: “O cobiçoso morre de juntar dinheiro, o cavaleiro heróico morre pela fama, o homem de êxito morre de lutar pelo poder e a gente comum evita a morte”. “Os que têm a mesma luz atraem-se mutuamente e os animais da mesma espécie um ao outro se buscam”; “As nuvens seguem o dragão e os ventos seguem o tigre”; “Ergue-se o sábio e todas as coisas se tornam claras” (Citação do Livro das Alterações). Poyi e Shuchi tornaram-se imortais graças ao louvor de Confúcio, e Yen Huei ficou conhecido da posteridade por ter seguido o Mestre, embora todos tivessem seus méritos próprios. Há, porém, muitos filósofos que vivem em isolamento e são admiráveis por seu caráter e sua conduta, mas de quem nunca se ouve falar. Não é triste isso? Pessoas comuns que sejam de rigorosa conduta e desejem tornar-se conhecidas dos pósteros não têm outro remédio senão associar-se a letrados de grande reputação.


ANEXO

A fim de completar esta coletânea de textos históricos, creio serem válidos dois textos ilustrativos para as concepções de história chinesa. O primeiro, de shang yang, embriona a idéia do passado como referência para mudança, e não permanência. Este conceito seria fundamental para os legistas na época de Qin, de Lisi e Hanfeizi, que defendiam a inovação como um meio de superação do passado, e a abolição dos antigos costumes e leis, em favor das teorias jurídicas legistas. O segundo texto seria uma visão histórica baseada na escola filosófico-médica do Neijing do que seria o passado idela chinês. embora não se trate de um texto especificamente histórico, ele cumpre algumas funções do mesmo, tais como: apresentar uma noção de calendário ordenador do cosmo, propor uma conexão – e uma teoria para perda – do dao, tão cara as escolas filosóficas e por fim, propor que a ordenação social dependeria da prática da saúde, pautadas na teoria yin-yang. Decerto, uma concepção fascinante de história.

a) A visão de passado em shang yang

Antigamente, na era do Grande e Ilustre Governante, as pessoas encontravam o seu modo de vida no corte de árvores e abate de animais; a população era dispersa e as arvores e os animais numerosos. Nos tempos de Huang-ti, nem os animais novos nem os ovos eram apanhados; os funcionários não tinham abastecimentos e, quando as pessoas morriam, não eram autorizadas a utilizar caixões exteriores. Estas medidas não eram as mesmas, mas o fato de ambas atingirem supremacia era porque os tempos em que viviam eram diferentes. Nos tempos de Shen-nung, os homens lavravam a terra para obter comida e as mulheres teciam para fazer roupas. Sem a aplicação de punições ou medidas governamentais, a ordem prevalecia; sem a formação de soldados armados, reinava-se com supremacia. Após a morte de Shen-nung, os fracos foram conquistados pela força e os poucos oprimidos pelos numerosos. Por conseguinte, Huang-ti criou as noções de príncipe e ministro, de superior e inferior, de conduta entre pai e filho, entre os irmãos mais velhos e mais novos, a união entre marido e mulher e entre companheiro e parceiro. Na pátria, aplicou a espada e a serra e, no estrangeiro, utilizou os soldados armados; tudo isto graças à assuntos internos e externos.

b) Grande Tratado sobre a Harmonia da Atmosfera das Quatro Estações com o Espírito Humano, no Neijing (o tratado interno)

Os três meses da Primavera chamam-se o período do princípio e do desenvolvimento da vida. As exalações do Céu e da Terra estão preparadas para gerar; assim, tudo se desenvolve e floresce.
Após uma noite de sono, as pessoas devem levantar-se de manhã cedo, caminhar vivamente pelo pátio, soltar o cabelo e tornar mais lentos os movimentos do corpo. Procedendo assim podem realizar o seu desejo de viver saudavelmente.
Durante este período, o corpo deve ser encorajado a viver e não a ser morto; devemos ceder-lhe livremente e não lhe tirar nada; devemos recompensá-lo e não castigá-lo.
Tudo isto está em harmonia com a exalação da Primavera e tudo isto é o método de proteção da nossa vida.
Os que desrespeitam as leis da Primavera serão punidos com mal do fígado. A esses o Verão seguinte reservará arrepios e mudanças más. Assim, terão pouco com que apoiar o seu desenvolvimento no Verão.
Os três meses de Verão chamam-se o período do crescimento luxuriante. As exalações do Céu e da Terra misturam-se e são benéficas. Está tudo em flor e começa a dar fruto.
Após uma noite de sono, as pessoas devem levantar-se de manhã cedo. Não se devem cansar durante o dia nem consentir que o seu espírito se irrite.
Devem permitir que as melhores partes do seu corpo e do seu espírito se desenvolvam; devem permitir que o seu hálito se comunique com o mundo exterior e devem proceder como se amassem tudo quanto existe exteriormente.
Tudo isto está em harmonia com a atmosfera do Verão e tudo isto é o método de proteção do nosso desenvolvimento.
Os que desrespeitam as leis do Verão serão punidos com mal do coração. A esses o Outono trará febres intermitentes. Assim, terão pouco apoio para as colheitas outonais e sofrerão de doença grave no solstício do Inverno.
Os três meses de Outono chamam-se o período de tranqüilidade da nossa conduta. A atmosfera do Céu é intensa e a atmosfera da Terra é desanuviada.
As pessoas devem deitar-se cedo e levantar-se cedo, com o cantar do galo. Devem ter o espírito em paz, a fim de minimizarem a punição do Outono. Alma e espírito devem unir-se para que a exalação do Outono seja tranqüila, e para conservarem os pulmões puros as pessoas não devem dar expansão aos seus desejos.
Tudo isto está em harmonia com a atmosfera e tudo isto é o método de proteção da nossa colheita.
Os que desrespeitarem as leis do Outono serão punidos com um mal pulmonar. A esses o Inverno trará indigestão e diarréia e, assim, terão pouco apoio para o armazenamento do Inverno.
Os três meses de Inverno chamam-se o período de fechar e armazenar. A água gela e a terra estala e abre fendas. Não devemos perturbar o nosso Yang (2).
As pessoas devem deitar-se cedo e levantar-se tarde, esperar que o Sol nasça. Devem reprimir e ocultar os seus desejos, como se não tivessem nenhum objetivo interior, como se estivessem em tudo satisfeitas. As pessoas devem tentar fugir ao frio e procurar calor, não devem transpirar pela pele e devem privar-se da exalação do frio.
Tudo isto está em harmonia com a atmosfera do Inverno e é o método de proteção do nosso armazenamento.
Os que desrespeitarem as leis do Inverno sofrerão de um mal dos rins (e Testículos); a eles a Primavera trará impotência e produzirão pouco.
O hálito do Céu é puro e leve. O Céu mantém sempre a sua virtude primitiva e, por isso, nunca se desmorona. Se o Céu se abrisse por completo, o Sol e a Lua nunca seriam luminosos, o mal chegaria durante este período de vazio, a atmosfera de Yang fechar-se-ia e a Terra perderia a sua luminosidade, nuvens e nevoeiro não poderiam sofrer mudanças, e, conseqüentemente, o orvalho branco não cairia e a circulação dos elementos naturais não se comunicaria à vida de tudo na Criação. A esta situação chamar-se-ia “não - doadora”, e, como conseqüência da sua “não - doação”, toda a vegetação pereceria. Além disso, o ar nocivo não desapareceria, vento e chuva não seriam harmoniosos, não cairia orvalho branco e a vegetação jamais voltaria a florescer. Haveria sempre ventos violentos e chuvaradas súbitas, e o Céu, a Terra e as quatro estações seriam incapazes de se proteger entre si, perderiam o Tao e não tardariam a ser destruídas.
Os sábios respeitavam as leis da natureza, e, por isso, o seu corpo estava isento de doenças estranhas; não perdiam nada do que tinham recebido da Natureza e o seu espírito de vida nunca se esgotava.
Aqueles que não procedem de conformidade com o hálito da Primavera não trarão vida à região do Yang inferior A atmosfera do seu fígado modificar-lhes-á a constituição.
Aqueles que não procedem de conformidade com a atmosfera do Verão não desenvolverão o seu Yang superior. A atmosfera do seu coração tornar-se-á vazia.
Aqueles que não procedem de conformidade com a atmosfera do Outono não colherão o seu Yin superior A atmosfera dos seus pulmões ficará bloqueada, isolada do seu espaço de combustão inferior.
Aqueles que não procedem de conformidade com a atmosfera do Inverno não abastecerão o seu Yin inferior A atmosfera dos seus testículos (rins) ficará isolada e diminuída.
Destarte, as interações das quatro estações e as interações do Yin e do Yang, os dois princípios da Natureza, são os alicerces de tudo quanto existe na Criação. Daí que os sábios tenham concebido e desenvolvido o seu Yang na Primavera e no Verão e concebido e desenvolvido o seu Yin no Outono e no Inverno, a fim de respeitarem a regra das regras; e assim, juntamente com tudo o mais da Criação, os sábios mantiveram-se no limiar da vida e do desenvolvimento.
Os que se rebelam contra as regras básicas do Universo cortam as próprias raízes e destroem a sua verdadeira personalidade. O Yin e o Yang — os dois princípios da Natureza — e as quatro estações são o princípio e o fim de tudo e são igualmente a causa da vida e da morte. Os que desobedecem às leis do Universo dão origem a calamidades e provações, enquanto os que respeitam as leis do Universo permanecem isentos de doenças perigosas, pois a eles foi concedido o Tao, o Caminho Certo.
O Tao era praticado pelos sábios e admirado pelos ignorantes. A obediência às leis do Yin e do Yang significa vida; a desobediência significa morte. Os obedientes dominarão, enquanto os desobedientes viverão em desordem e confusão. Tudo quanto é contrário à harmonia com a Natureza é desobediência e equivale à rebelião contra a Natureza.
Por isso, os sábios não tratavam aqueles que já estavam doentes e instruíam aqueles que ainda não estavam doentes. Não queriam guiar aqueles que já eram rebeldes; guiavam aqueles que ainda não eram rebeldes. E este o significado de toda a discussão precedente. Administrar remédios a doenças que já se desenvolveram e reprimir revoltas que já eclodiram é comparável ao comportamento daquelas pessoas que começam a abrir um poço depois de terem sede, ou daquelas que começam a fundir armas depois de já se terem lançado na batalha. Não chegarão estas ações demasiado tarde?

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